29/07/13

Livros por onde ir

Não compro nenhum livro novo há mais de três meses. Melhor, não compro nenhum livro. Novo ou velho. Mesmo. Admito que já cedi algumas vezes e passei por livrarias. Parei a ver os títulos, folheei livros, vi contracapas. Até me senti tentado a comprar, uma ou duas vezes. Mas resisti. Parte do prazer em não contactar profissionalmente com livros é passar ao lado das novidades absolutamente a não perder do momento. Continuar alheado do último hype, não me sentir tentado a pegar uma vez mais num qualquer livro que depois me arrependo de ler. Claro que, persistindo neste auto-controlo, estou a passar ao lado de muitas estimáveis "novidades". Azar. Tenho centenas de livros em casa que nunca li. Coisas que comecei e não acabei, páginas incólumes de volumes comprados em feiras ou por desfastio, os livros da outra metade da casa, o que ainda não conheço da minha amante. Havendo tanto por desbravar, milhares de páginas neste momento completamente gratuitas, que não vão pesar no meu orçamento mensal, para quê começar a ler traduções péssimas em português do novo acordo ou tentar o último grande autor português que esforçadamente não passa de um Borges de quinta categoria? 
Tenho os consagrados por ali, e vou-os lendo. Os portugueses e os outros. E tenho as releituras para fazer, ordenadas pela melancolia: Terapia, de David Lodge; um de Vergílio Ferreira. Paul Auster.
Paul Auster. Esta é uma tradução menos do que manhosa de Palácio da Lua. Autor de que gostei de forma mais ou menos apaixonada há mais tempo do que me queria lembrar, e de quem continuei a ler, ao longo dos anos, o que foi escrevendo, por simpatia. Simpatia não pelo que ele é, mas pelo que eu fui. Continuei a ler porque gostava de mim quando lia Auster com interesse. Um interesse nebuloso, de quem desconfia que o fio da narrativa seria como um anzol que puxava para margens lamacentas da literatura. A coisa do policial, da função fática e outras tretas que não interessam a ninguém. Auster começou a revelar o seu verdadeiro rosto quando decidiu dedicar-se ao cinema. Desastre quase absoluto. Houve aquele filme feito a meias com Wayne Wang, que não era mau de todo (Smoke/Blue in the Face), mas a partir daí foi sempre a cair, de um modo tão acelerado que nem justifica uma consulta do IMDB para confirmar os títulos dos filmes. A inépcia cinematográfica seria sinal de um génio deslocado, ou algo mais profundo? Não serei peremptório, darei o benefício da dúvida. Do meu tempo, depois desta última tentativa, duvido (mas desdigo-me tantas vezes, que é provável falhar esta promessa). Mais de duzentas páginas de histórias atrás de histórias, contos da desgraça, encaixados uns nos outros, escritos num tom sofrido e grandiloquente que irrita até o melhor samaritano, mais de duzentas páginas sem criar uma única personagem que tenha mais espessura do que a folha de papel em que o nome foi escrito. Acrescente-se: a técnica de Paul Auster resume-se a criar nomes para servirem enredos menos verosímeis do que a maior parte das telenovelas que passam nas televisões portuguesas. Um carrossel de surpresas ao virar da página, redundando num estrondoso nada.
Mas posso ser eu, que estou mal disposto por não poder - a promessa feita é mais ou menos para manter - comprar. Se calhar, o gesto de comprar livros novos encerra em si tanta futilidade como a compra de um vestido ou de um par de sapatos. A novidade é que conta, o ritual consumista, e por aí fora. 
Vou ler antes de dormir. Nada de novo. 

*Uma foto de Marilyn Monroe lendo é o derradeiro cliché. Esta é de Elliott Erwitt. There. 

27/07/13

Jesse e Celine

Ainda sobre os filmes de Linklater, fica aqui o que escrevi sobre Antes do Anoitecer, no meu antigo blogue. Interessante descobrir que o que me interessou na altura foi menos o filme - em termos formais e temáticos - e mais o que me levou a pensar, onde conduziu o meu pensamento. Por ordem cronológica:

O que mais impressiona no filme Antes do Anoitecer, que finalmente consegui digerir, é a sensação de transitoriedade das coisas; o definitivo é uma ideia que se perde do primeiro filme, a certeza dos acontecimentos também. O que diz este filme é que existe um tempo para entender que não há nada, nem ninguém, na vida, que responda absolutamente à questão fundamental: porquê? E isto será precisamente a passagem para a vida adulta. Posso falar em idealismo, mas não é bem isso. Celine e Jesse continuam, de certo modo, idealistas. Ainda esperam que a felicidade aconteça, e que aconteça através do amor. Mas o idealismo irrealista de Antes do Amanhecer foi substituído pelo romantismo desencantado do segundo filme. Há uma melancolia que se passeia por Paris, que os acompanha. É a melancolia da idade perdida, do tempo que passou e (infelizmente?) ficou. A conclusão a que se chega? Aos trinta, como só os trintões sabem, o sexo deixa de ser a concretização do amor para passar a ser um fim em si mesmo. Lugar-comum, é verdade, mas é assim a vida. Quando existe a percepção de que a pergunta fundamental nunca será respondida, o melhor será o abandono aos prazeres do quotidiano, ao mergulho irracional no mundo imediato dos sentidos. Desencanto, como referi antes? Não, apenas lucidez, realismo. - 30/11/2004
O título deste post tem uma razão de ser, que não cheguei a explicitar na primeira parte. Tem a ver com aquela ideia de que a vida não passa de um esboço, que nunca chega a ter uma versão final, e por isso tudo parece demasiado difuso, incontrolável, definitivamente inacabado. O díptico Antes do Amanhecer/Antes do Anoitecer transmite esta ideia de transitoriedade que não é auto-consciente, a sensação (e nunca passa disso mesmo) de que o que acontece nunca será nem controlado, nem completamente apreendido por nós. Os dois filmes são, portanto, esboços, ensaios para uma coisa maior, e sabemos que nunca irão passar desta fase; ao mesmo tempo, o díptico é um espelho da vida de Celine e Jesse, que por sua vez é um espelho da vida banal do eu indefinido que vai ver o filme. Qual o valor do sentido das coisas quando não existe uma compreensão total do peso dessas coisas? Esvaziar cada decisão reduzindo-a à sua insignificância, ou, como se diz em inglês, "Get Laid". - 02/12/2004

26/07/13

Sob o signo de Rossellini

A trilogia Jesse/Celine, de Richard Linklater, é por várias razões, mais emotivas do que racionais, mais sentimentais do que cinematográficas, muito cá de casa. Sobre o terceiro tomo de trilogia, este texto do Daniel Curval é dos melhores que já li sobre o filme. Talvez acrescentasse uma referência à evocação que Linklater faz de um outro filme sobre um casal viajando pela crua luz de um país mediterrânico: Viagem a Itália, de Rossellini. Desde a sequência quase inicial - a longa conversa no carro, filmada do mesmo ponto de vista que Rossellini escolhe - até à explicitação clara durante a sequência da conversa entre ruínas, encenação pós-moderna do desencontro em Pompeia entre Ingrid Bergman e George Sanders, Antes da Meia-Noite é marcado por essa melancólica reflexão sobre o amor e a distância que o tempo cava entre os amantes. A metáfora das ruínas marca todo o dia de Jesse e Celine, juntos ainda apesar do amor domesticado, do tempo que esvaziou todo o romantismo dos dois primeiros filmes. Se Antes do Amanhecer era um Casablanca em tempos de inter-rail, Antes do Anoitecer será o remake que não chegou a acontecer do filme de Michael Curtis. Antes da Meia-noite recorda a outra Ingrid Bergman, a que fugiu de Hollywood e viveu uma cinematográfica história de amor com Roberto Rossellini. Mais cinéfilo, mais desencantado, mais realista, o terceiro filme da trilogia é bem capaz de ser o melhor. Mas o romantismo, esse, desapareceu.   

17/07/13

Um verão

Concordando com os que dizem que não há leituras de verão, isto é, que as leituras de praia não se diferenciam das leituras que o frio traz, a verdade é que ao longo da minha vida noto padrões que se acomodam melhor ao calor ou à linha do horizonte entre mar e céu do que ao sofá e ao barulho da chuva lá fora.
De há uns tempos para cá, por circunstâncias pessoais concretas, tenho retomado os livros de Vergílio Ferreira, relendo uns e lendo pela primeira vez outros. Tornaram-se assim as suas frases uma companhia que combina com o calor, como se a vertigem existencial que encontramos nelas apenas pudesse ser atenuada pela limpidez da luz e pela certeza de que a noite chegará mais tarde. Claro que pensar isto não passa de um artifício que procura explicações para o acaso. Mas não esvaziemos de importância o jogo do azar e da sorte nas decisões que tomamos.
Levado por estes livros, fui empurrado para o Mito de Sísifo, que começara a ler e nunca terminara, depois de ter lido os romances de Camus de forma intermitente. Tão longe estou do verão em que peguei num tijolo de quase mil páginas, um policial passado em ambiente académico, numa cidade de Boston que apenas conheço da ficção. A autora é Donna Tart, e o livro chama-se A História Secreta, e julgo já ter escrito sobre ele em tempos.
Mas não me interessa agora o livro em si. Em vez disso, recordo os dias passados em Porto Covo e as horas de sol na praia, o meu filho à sombra de uma falésia, dormindo sestas prolongadas enquanto eu mergulhava nos abismos negros e invernosos de um grupo de amigos, estudantes de grego e de cultura clássica iniciando-se nos mistérios do amor e da morte. A distância entre aquele sol e aquele mar, e os bosques, os corredores escuros e a pedra antiga do romance era percorrida de um ápice, a cada virar de página. Dormindo a meu lado, o meu filho, tão perdido quanto eu - o conforto da certeza era o embalo perfeito para os nossos sonhos.
A praia de há oito anos agora foi cortada a meio. É uma meia-praia, o areal aos poucos foi sendo engolido pelas águas, e a falésia que nos abrigou agora tem um sinal avisando os veraneantes do perigo de derrocada. Logo a seguir à linha da maré, o mar cavou um fosso que torna os banhos perigosos. Não é mesma praia, apesar de ser o mesmo bar e a mesma linha do horizonte, o mesmo sol. São outros, os livros. E os sonhos.