26/10/13

Joaquim Palhares

Partindo do princípio - de tudo, o princípio de tudo - que todos nós, sejamos conhecidos por milhões, ou pobres anónimos vivendo e morrendo na sarjeta, não passamos do resto que ninguém irá recordar, a seu tempo, não deixa de ser abracadabrante depararmo-nos com os tristes desconhecidos que um dia atravessaram o caminho de pessoas maiores do que eles, nomes que ainda agora conhecemos, admiramos, endeusamos. 
Ocorre-me isto de cada vez que penso nos milhares de críticos que ignoraram os livros de Kafka ou os filmes de Ozu - apesar de aquele e este no seu tempo terem sido reconhecidos por alguns. Do mesmo modo neste preciso momento passam por nós livros e filmes que ninguém nota, discretas obras que daqui a umas dezenas, centenas de anos, serão elevadas a olimpos a que agora não podem aceder. E mesmo duvidando de que esta verdade possa acontecer - não haverá agora um acesso quase universal a tudo quanto é publicado? -, acabarão por passar por nós, pelo tempo da nossa vida, alguns génios que apenas serão reconhecidos como tal quando já ninguém se lembrar deles. E de nós. 
Os desconhecidos que passaram pelo que era maior do que eles e ignoraram, esqueceram ou não viram. E os outros, os funcionários cansados que, mesmo reconhecendo qualquer coisa que os transcende, se limitaram a colocar o carimbo normativo, selo de uma educação formatada, de uma ordem superior, de uma mediocridade burocraticamente ordenada, política. 
É esse o caso de Joaquim Palhares, censor entre tantos outros, que leu um livro de Herberto Helder e, nele não encontrando ameaça de ordem política (apesar da "índole esquerdista"), reservou à obra a via da proibição, o silêncio da censura, por conter "passagens de grande obscenidade", apesar de não merecer qualquer reparo como "obra literária". Fascinante. Nem no recolhimento do papel menor que lhe foi confiado Joaquim Palhares deixou de dedicar à obra censurada o seu juízo crítico. É certo que a este juízo se sobrepôs um juízo ético acomodado ao regime da época, mas não deixa de ser digno de nota que no auto lavrado Joaquim Palhares não se tenha abstido de tecer considerações sobre a qualidade literária do objecto avaliado. 
Por onde andará agora este cansado funcionário? Poderá ter morrido, deixado descendência. Ter sido esquecido por todos os que o conheceram, e o seu nome, para além da efémera fama de aparecer num auto de censura a Herberto Helder, apenas existir gravado no mármore ou num registo perdido de nascimentos, casamentos, morte. Porém, existiu, existiu apenas, e existiu mais do que todos os funcionários e poetas e artistas que nem à fama de partilharem o mesmo espaço da História com Herberto Helder puderam aspirar. Andaram por cá, desapareceram. Um nome num papel é mais do que isto. Até que o fogo o queime, e o último homem esqueça.

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