28/12/12

Mais livros 2012

De entre os livros cuja leitura chegou a bom porto, poucos, como tem acontecido desde sempre, foram publicados este ano. Em inglês ou português. O ziguezague das minhas leituras tem pouco a ver com as novidades, os hypes e os tops. Não é vaidade, nem pretensão. Nem sequer uma vontade, deliberado. É a constatação de um facto. Leio e passo de livro para livro conduzido por acontecimentos menores, citações breves, leituras de relance, ligações entre temas ou autores. Vou tentando, tacteando o terreno das leituras, sem ainda saber até que ponto erro mais ou acerto; ou sem sequer saber se existe essa coisa do erro e do acerto. Leio, ponto. Dez livros do ano que passou, portanto. Sem qualquer ordem preferencial. Título em inglês quando lido nessa língua.

- Sweet Tooth, Ian McEwan. 
- A Geração Perdida, James Wood.
- Fun Home - Uma Tragicomédia Familiar, Alison Bechdel.
- Entrevistas da Paris Review, organizado por Carlos Vaz Marques.
- Fanny Owen, Agustina Bessa-Luís.
- A Ilha de Caribou, David Vann.
- Complete Short Stories, Flannery O'Connor.
- Blankets, Craig Thompson.
- Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Mário de Carvalho.
- A Consciência e o Romance, David Lodge.

Apenas três romances, reparo. Duas novelas gráficas. Cada vez leio menos ficção, mas ainda assim se terá havido leitura marcante terá sido a dos contos de Flannery O'Connor. A lista dos livros lidos incluirá certamente mais cinco ou seis que poderiam estar nesta seleção (substitui dois títulos ainda na fase de escrita do post). Não há nenhum de poesia, apesar de ter lidos poemas de uns quantos autores. Mas a leitura de poesia é ainda mais caótica, não tenho o hábito de ler as obras do princípio ao fim. Tenho em mãos dois livros que certamente poderiam figurar nesta lista, mas presumo que apenas os terminarei lá para 2013. É assim.

Adenda: tinha um livro lido em 2011 na lista e esqueci-me completamente do romance de Agustina. Substituição feita.

27/12/12

Livros_vida_etc

Olho para as três pilhas de livros na mesinha de cabeceira e vejo o meu ano resumido. Resumido, não, somado e completo. No que diz respeito a leituras, mas também no que diz respeito ao resto, essa coisa íntima de que não podemos falar, a existência.

(O itálico não é uma citação de outro autor, não literal, mas repete uma ideia feita. Nós seremos o que nos é exterior ou seremos o que os outros descobrem que nós somos. Por isso dizem que o amor é uma revelação. Tem de ser uma revelação, uma entrega de nós ao outro, o Eu revelado, e toda essa treta místico-psicológica.)

Mas as três pilhas. Os que li até ao fim, os que deixei a meio, os que nem cheguei verdadeiramente a começar. Se tiver muita paciência e pouca preguiça, vou falar de alguns dos livros até ao fim do ano.

A pilha do meio, livros abandonados:

Pensar, depressa e devagar, Daniel Kahneman. Estava a gostar do livro, ficou na página 130/131, mas meteram-se outros livros (ou outras vidas?) pelo meio. Tem coisas de que não gosto - dispensaria a descrição pormenorizada das experiências, etc. Mas talvez o retome (apesar de tê-lo deixado há mais de seis meses).

Cidades Invisíveis, Italo Calvino. Uma releitura que não chegou a arrancar, sobretudo porque a razão pela qual eu tomei a decisão de o reler deixou de fazer sentido. Tanto, que já nem me lembro da razão. Mas havia. 

Duluoz, o Vaidoso, Jack Kerouac. Tanga pretensiosa. Como só Kerouac sabia escrever. Ainda está para nascer o dia em que sentirei um assombro igual ao que senti quando li Pela Estrada Fora.

Vida e Destino, Vassili Grossman. Para que serve um tijolo sobre a Segunda Guerra Mundial escrito por um soviético?

Experience, Martin Amis. Terei começado a ler este no final do ano passado, mas nunca cheguei ao fim. Amis continua a ser um escritor que me é esquivo, apesar de todas as boas referências (e do indiscutível "prazer da linguagem" que me provoca).

O Regresso do Amor, Alice Munro. Os contos de Munro e de Lydia Davis têm sido abundantemente elogiados em todo quanto é tugúrio mais ou menos respeitável. Até agora, não percebi porquê. Talvez por ter sido este o ano em que li finalmente as histórias de Flannery O'Connor. A fasquia elevou-se a níveis estratoféricos. 

As Vinhas da Ira, John Steinbeck. A tradução (da colecção Mil Folhas, que o Público lançou aqui há uns anos) não é boa. Terei de ler em inglês, até porque as primeiras vinte páginas não desiludem, por entre tanta gralha e erro.

Haverá mais? Terei de ver. A continuar. Isto e o resto.

26/12/12

Trouble with the curve

Como seria de esperar, não consegui ficar muito tempo zangado com Clint Eastwood. O "problemazinho" com a cadeira vazia no congresso Republicano foi resolvido de forma plenamente satisfatória. Como actor, personagem, persona, pessoa que se repete de filme para filme, o rezingão de quem não se pode deixar de gostar. Não é preciso estar atrás da câmara para fazer um Eastwood movie. Clint é Clint.

23/12/12

Feliz Natal

Houve um tempo em que se lastimava
a fúria materialista do Natal,
o consumismo enlouquecido das multidões
nos centros comerciais, gastos supérfluos,
compras compulsivas, o frenesim dos presentes
e a alegria das crianças depois da consoada,
quando assaltavam os pés da árvore e se
dedicavam à selvageria da comparação e da inveja,
a alegria de quem não sabe, nem sonha, o que poderá
querer dizer aquela expressão dos pedagogos
que entrou na boca do povo, “a inocência das crianças”,
hábitos que vêm do berço e se aprimoram na
simulação de vida a que por conveniência se chama “família”.

Houve um tempo em que se lamentava
que as “pessoas” tivessem esquecido os valores cristãos
da época, a caridade e o amor, a partilha e o calor
da lareira pela noite fora, o sono
antes da parca prenda dos humildes colocada no sapatinho,
a missa à meia-noite, ao bater das badaladas, o senhor prior
piando a palavra do Senhor, e a esmola aos pobres
postados na porta da igreja.

Houve um tempo em que nem presentes havia,
apenas o fio da espada, a fome e a violência,
jornadas no deserto e conquistas dos exércitos,
morte, destruição e ruína redimidas
pela vinda do Cristo que a fio de espada, fome e violência
conquistou em poucos séculos o território

onde agora se lamenta que as crianças já não
possam gritar e as “pessoas” não possam comprar
sem constrangimentos, que já não se alimente
o comércio pouco tradicional e que já
não se possa chorar a perda dos valores de antigamente,
a caridade, a oferenda, a compaixão.

Este é o tempo de Deus, entre os homens,
quando os ricos poderão voltar
a entrar no Reino dos Céus porque perderam tudo
e agora se postam na porta da igreja
à espera da esmola que antes davam.

Já ninguém lastima a fúria materialista do Natal.
Agora pede-se um regresso às tradições de antigamente –
ao consumismo enlouquecido das multidões
nos centros comerciais, aos gastos supérfluos,
às compras compulsivas, ao frenesim dos presentes
depois da consoada.

As crianças, essas, ainda andam por aí.

Escrever

20/12/12

Noite do caçador

Rever muitos anos depois como se fosse a primeira vez. Deslumbre perante o milagre. Por natureza, o que não se repete.

19/12/12

Sylvia

Last letter

What happened that night? Your final night.
Double, treble exposure
Over everything. Late afternoon, Friday,
My last sight of you alive.
Burning your letter to me, in the ashtray,
With that strange smile. Had I bungled your plan?
Had it surprised me sooner than you purposed?
Had I rushed it back to you too promptly?
One hour later—-you would have been gone
Where I could not have traced you.
I would have turned from your locked red door
That nobody would open
Still holding your letter,
A thunderbolt that could not earth itself.
That would have been electric shock treatment
For me.
Repeated over and over, all weekend,
As often as I read it, or thought of it.
That would have remade my brains, and my life.
The treatment that you planned needed some time.
I cannot imagine
How I would have got through that weekend.
I cannot imagine. Had you plotted it all?

Your note reached me too soon—-that same day,
Friday afternoon, posted in the morning.
The prevalent devils expedited it.
That was one more straw of ill-luck
Drawn against you by the Post-Office
And added to your load. I moved fast,
Through the snow-blue, February, London twilight.
Wept with relief when you opened the door.
A huddle of riddles in solution. Precocious tears
That failed to interpret to me, failed to divulge
Their real import. But what did you say
Over the smoking shards of that letter
So carefully annihilated, so calmly,
That let me release you, and leave you
To blow its ashes off your plan—-off the ashtray
Against which you would lean for me to read
The Doctor’s phone-number.
My escape
Had become such a hunted thing
Sleepless, hopeless, all its dreams exhausted,
Only wanting to be recaptured, only
Wanting to drop, out of its vacuum.
Two days of dangling nothing. Two days gratis.
Two days in no calendar, but stolen
From no world,
Beyond actuality, feeling, or name.

My love-life grabbed it. My numbed love-life
With its two mad needles,
Embroidering their rose, piercing and tugging
At their tapestry, their bloody tattoo
Somewhere behind my navel,
Treading that morass of emblazon,
Two mad needles, criss-crossing their stitches,
Selecting among my nerves
For their colours, refashioning me
Inside my own skin, each refashioning the other
With their self-caricatures,

Their obsessed in and out. Two women
Each with her needle.

That night
My dellarobbia Susan. I moved
With the circumspection
Of a flame in a fuse. My whole fury
Was an abandoned effort to blow up
The old globe where shadows bent over
My telltale track of ashes. I raced
From and from, face backwards, a film reversed,
Towards what? We went to Rugby St
Where you and I began.
Why did we go there? Of all places
Why did we go there? Perversity
In the artistry of our fate
Adjusted its refinements for you, for me
And for Susan. Solitaire
Played by the Minotaur of that maze
Even included Helen, in the ground-floor flat.
You had noted her—-a girl for a story.
You never met her. Few ever met her,
Except across the ears and raving mask
Of her Alsatian. You had not even glimpsed her.
You had only recoiled
When her demented animal crashed its weight
Against her door, as we slipped through the hallway;
And heard it choking on infinite German hatred.

That Sunday night she eased her door open
Its few permitted inches.
Susan greeted the black eyes, the unhappy
Overweight, lovely face, that peeped out
Across the little chain. The door closed.
We heard her consoling her jailor
Inside her cell, its kennel, where, days later,
She gassed her ferocious kupo, and herself.

Susan and I spent that night
In our wedding bed. I had not seen it
Since we lay there on our wedding day.
I did not take her back to my own bed.
It had occurred to me, your weekend over,
You might appear—-a surprise visitation.
Did you appear, to tap at my dark window?
So I stayed with Susan, hiding from you,
In our own wedding bed—-the same from which
Within three years she would be taken to die
In that same hospital where, within twelve hours,
I would find you dead.
Monday morning
I drove her to work, in the City,
Then parked my van North of Euston Road
And returned to where my telephone waited.

What happened that night, inside your hours,
Is as unknown as if it never happened.
What accumulation of your whole life,
Like effort unconscious, like birth
Pushing through the membrane of each slow second
Into the next, happened
Only as if it could not happen,
As if it was not happening. How often
Did the phone ring there in my empty room,
You hearing the ring in your receiver—-
At both ends the fading memory
Of a telephone ringing, in a brain
As if already dead. I count
How often you walked to the phone-booth
At the bottom of St George’s terrace.
You are there whenever I look, just turning
Out of Fitzroy Road, crossing over
Between the heaped up banks of dirty sugar.
In your long black coat,
With your plait coiled up at the back of your hair
You walk unable to move, or wake, and are
Already nobody walking
Walking by the railings under Primrose Hill
Towards the phone booth that can never be reached.
Before midnight. After midnight. Again.
Again. Again. And, near dawn, again.

At what position of the hands on my watch-face
Did your last attempt,
Already deeply past
My being able to hear it, shake the pillow
Of that empty bed? A last time
Lightly touch at my books, and my papers?
By the time I got there my phone was asleep.
The pillow innocent. My room slept,
Already filled with the snowlit morning light.
I lit my fire. I had got out my papers.
And I had started to write when the telephone
Jerked awake, in a jabbering alarm,
Remembering everything. It recovered in my hand.
Then a voice like a selected weapon
Or a measured injection,
Coolly delivered its four words
Deep into my ear: ‘Your wife is dead.’

Ted Hughes.

17/12/12

Margaret

Um filme que vê a luz - que é como quem diz, é visto - muitos anos depois de finalizado, muitas montagens depois, dois mortos pelo meio - os produtores Anthony Minghella e Sidney Pollack*. Não é caso único, longe disso, mas não deixa de ser facto assinalável.
Margaret, de Kenneth Lonergan, o realizador da pequena maravilha You Can Count on Me. Um nome de mulher que não é nome de figura nem de personagem, é nome de poema de John Maynard Hopkins dito por um professor, já na segunda metade do filme. Falamos do mundo indecifrado da adolescência, resguardado do olhar dos adultos. A inocência perversa, incompreendida por quem já se esqueceu desses doces anos da certeza. Certeza das coisas sobre as quais estávamos errados. Certeza de que a incerteza será passageira (e ainda não sabemos que nunca o deixará de ser). Lonergan consegue captar esse momento de passagem - a forma do mundo moldada pelas mãos de uma adolescente que, ao sentir a morte de frente, sabe que perdeu o presente. Como os EUA perderam, no 11 de Setembro, a sombra pairando sobre a história. Filme admirável, sei que se entranhará no passo do tempo. Apesar de todas as imperfeições.

*Martin Scorcese andou metido ao barulho na fase da pós-produção, e a versão estreada em 2011 não será a do realizador - esta terá sido editada a meias com Scorcese. História aqui.

14/12/12

Adequação

Podemos escolher passar ao lado dos ritmos sociais? Ou não teremos maneira de fugir a essa submissão? A passagem do tempo, contar os dias e os anos, é uma convenção como qualquer outra. Uma adequação de um espírito subjectivo a uma norma universal. O que poderemos fazer com esta simples constatação? Permitir que o nosso afastamento da norma seja a medida pela qual avaliaremos o projecto existencial. Uma derrota, por certo.

11/12/12

Tabu

Em Tabu, Miguel Gomes recria o método do seu primeiro filme, A Cara que Mereces, sob a asa protectora e de mãos dadas com Wes Anderson, ao mesmo tempo que finge homenagear os clássicos, à maneira de um estudante de cinema aplicado. Tanto que se pode encontrar pontos de contacto entre este filme e O Sangue, de Pedro Costa, sobretudo na segunda parte. O preto e branco de Bresson (e Ozu) em Costa, o de Murnau em Gomes. Falta talvez uma outra espessura e uma sensibilidade dramática mais apurada na primeira metade. A irrisão quase caricatural cai bem mas corre-se o risco do melodrama ensaiado na segunda parte perder intensidade, falhar. Uma obra-prima, como não se tem cansado de repetir meio mundo (o filme tem estado em todas as listas de melhores do ano, até agora)? Estranhamente, Aquele Querido Mês de Agosto foi mais certeiro, surpreendente e deslumbrante.

07/12/12

A Dama de Shanghai

Devemos levar a sério o esforço disperso dos génios. As pequenas obras-primas são quase sempre golpes breves de criadores com plena consciência das limitações; as grandes obras-primas são deslumbrantes exercícios do ego. As primeiras comovem; as segundas fascinam e provocam inveja, sobretudo quando todas as costuras estão à mostra. Não recusemos o que a arte nos oferece, venha de onde vier.

06/12/12

O terceiro homem

Se não servir para outra coisa, que sirva para se ir registando o que se vai vendo, e fazendo, e adiando. Enquanto se vai vendo (às vezes lê-se também) vai-se adiando. Adiando. Até que um dia o que se adia volta como a onda nas costas e leva-nos, empurra-nos para alto mar. Não sei, vai-se fazendo. Remediando um espírito quebrado, sem emenda nem hipótese de salvação.

04/12/12

Com certeza

"Então fizeram-se aqui pelos menos dois livrinhos com os quais se salvaram duas vidas. Não é isto mais importante do que a qualidade literária?" 
Vítor Silva Tavares, o não-editor entrevistado este mês para a Ler. A imagem foi retirada do Facebook do Rui Bebiano.