21/06/10

José Saramago (1922-2010)


A alegoria evidente de Ensaio Sobre a Cegueira - cegos que dirigem cegos no meio da escuridão branca - poder-se-ia evocar a propósito do seu desaparecimento e das reacções - previsíveis, de resto - que muitos exibirão com orgulho besta. Na morte de um grande escritor, sabendo que a obra ficará, lembram-se daquilo que nada tem que ver com a literatura: política. A mim nada interessa a "controversa figura pública", essa indigente invenção do poder mediático que transforma artistas em imagens vazias que servem para o povo amar ou odiar. Aceito que Saramago vezes de mais se tenha entregue a esse limitado papel de ressentido da corte, mas esta verdade apenas confirma a ideia de que a personalidade do artista devia ser a última coisa a permanecer na memória.
Talvez de pouco adiante vociferar contra o estado de coisas que nos mostra um jornalista (no bloco noticioso das duas na SIC Notícias) mais interessado em arrancar das personalidades a quem telefonaram para obter uma reacção à morte do escritor (João Rodrigues, Fernando Dacosta) uma afirmação polémica, um comentário negativo, qualquer coisa que anime a turba, do que num sincero elogio do defunto. A morte é uma chatice, porque calhou mesmo a meio de um acontecimento simbólico do patriotismo balofo, o Mundial. Só assim se entende porque razão o jornalista insistiu tanto em saber se Saramago se sentia "amargo" em relação ao país onde nasceu. É difícil não dar razão aos pessimistas quando se confunde patriotismo com futebolismo e ataca-se postumamente alguém que (não gosto da expressão, mas neste caso aplica-se) tanto deu ao país - e não falo do Nobel, os prémios pouco ou nada valem, mas sim da obra que escreveu - por ter ido viver para uma ilha espanhola por razões que nunca deveriam ser questionadas: amor.
Este patriotismo - dizer mal de um escritor que tratou a língua portuguesa como muito poucos - será o mesmo que fatuamente deflagra quando joga a selecção nacional, e que alegremente se passeia pelas televisões doutrinando o povo. Não é muito diferente daquele que passa trezentos e sessenta e cinco dias por ano a lamentar o país sem se mexer do lugar, sem fazer nada para mudar o estado de coisas. O reformismo situacionista que se preocupa mais com o acessório - a vida de um escritor - do que com o essencial - a sua obra. Estão bem uns para os outros, mas por favor deixem em paz a memória daqueles que nos superlativam. Quanto ao lixo onde gostam de remexer, bom proveito vos traga; a memória não será manchada.

(Publicado no Arrastão)