04/11/10

Contrato com o leitor

Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é uma boa medida do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor; dá para pensar em tudo o que arquivamos, deixamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão – como o areal de uma praia vazia - que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso desassossegado para o nada? Se o li, desvaneceu, confirmo a intuição de Maurice Blanchot. A história já não se encontra no lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Não aceito esta ideia antiga, o lugar-comum. Um mundo sem homens, no qual as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que as palavras escritas nas capas se deixem de ler; até que desapareça o nome dos autores; e a história que ele conta. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Contaram-me uma história. Um escritor morre, e de um momento para o outro - aquele derradeiro segundo em que a vida regressa ao brevíssimo presente – todos os livros escritos por ele, publicados e republicados, desaparecem de todas as estantes de todas as bibliotecas, de todas as livrarias, de todos as casas ou edifícios onde sobreviva ainda uma palavra do autor. A obra morre com a morte do autor, assim a história me foi contada, e eu prometi não a contar de novo, amedrontado por uma superstição sem nome. Esse escritor, todo o tempo que viveu tentou apagar, meticuloso, o instante imediatamente anterior, escrevendo. As histórias eram o espelho do seu método, como se a escrita fosse um revólver e a memória a bela mulher que nasceu para morrer às mãos de um assassino contratado. E ao escrever ele traía o seu contrato, fixando em papel o passado. Mas havia um trunfo na manga, um plano subterrâneo. O que ele escrevia era uma traição ao que tinha vivido. Se pudesse existir apenas como o autor das suas histórias, era como se fosse uma personagem, alguém que, de verdade, nunca foi. A subversão era tão sofisticada que ninguém daria por ela; portanto, não chegava a ser. Ao morrer, deixaria uma obra que era o contrário do que tinha vivido, e ninguém se lembraria. No entanto o plano tinha uma falha: a sua falsa vida, a que os livros guardavam, declina o convite para eternidade e também ela morre com o autor. Trágica derrota.
Talvez Enrique Vila-Matas seja um traidor, quando se lembra de um Robert Walser que nunca chegou a conhecer caminhando sobre a neve naquele célebre dia de Natal, procurando o esquecimento. Talvez se imagine no lugar das crianças que encontraram o escritor suíço deitado no caminho, um homem desconhecido que acabou por lhes mudar o curso da vida. Um escritor morto é tal e qual um estranho morto sobre a neve, e o orgulho que convence Vila-Matas do contrário é uma terna ilusão que apenas o pode levar à absoluta infelicidade. Consigo perdoar Vila-Matas, e sentir até alguma cumplicidade ao imaginá-lo visitando a casa de saúde onde Walser passou os anos finais da sua vida. Ele e a sombra do Doutor Pasavento – figura sombria resgatando de um filme outro célebre doutor, Caligari, o médico dos prodígios demoníacos. Pasavento deixa de dar notícias ao mundo e exila-se na sombra, como Caligari, trazendo pela mão um Vila-Matas que começa a existir através das suas personagens. A imagem que eu tenho dele é de um duplo de Pasavento ou do narrador de Paris Nunca se Acaba, e ele gostaria com certeza de saber que o café de Barcelona onde costuma escrever é mais real – e romântico – numa crónica que eu li do que é na realidade. Um banal café na maior praça de Barcelona e, ao fundo, ocupada por um grupo de barulhentos turistas americanos, a mesa onde nasceu Pasavento. Pasavento, de destino amaldiçoado pelo livro pousado sobre a fórmica, o livro de Blanchot onde este fala dos escritores que tendem para o desaparecimento.
Agora é, quem sabe, tarde para o arrependimento, e descubro que o que acabei de escrever perdeu toda a urgência; li o livro do doutor há dois anos e sete meses, era Inverno e chovia. Apaguei, no que escrevi, algumas palavras. Era assim, a frase: Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. Não queria ceder tanto à literatice da autofagia, mas cada nova palavra que se acrescenta ao texto o conduz para outro caminho. Por cada frase lida há outra frase morta, desaparecida. O presente perde a voracidade e a máscara que uso para o enganar cai (mas não se pense numa tragédia grega).
Em Barcelona fazia tanto calor como agora; era Agosto, fui à praia e aos habituais sítios turísticos e não encontrei Pasavento. Talvez ele estivesse nessa altura de férias numa ilha mediterrânica – em Agosto os barcelonenses fogem da cidade e os poucos que ficam ou são loucos ou escritores – assim escreve Vila-Matas. Eu fui um dos indesejados, um vírus, uma praga na cidade, um dos muitos milhares de turistas que horrorizam os loucos que ficam. E entrei no café da Plaza Catalunya à procura já não sei se de Vila-Matas ou de Pasavento, e encontrei apenas turistas suando sob os panamás e as camisas coloridas, debicando alarvemente (não é contraditório) tapas e bocadillos, sorvendo cervejas para esquecer o calor e o desejo despontado pelos bandos de adolescentes nórdicas que se passeiam pelas ramblas, imunes ao encanto alarve dos homens de meia-idade.
Mas nada do que escrevo tem a ver com esquecimento nem com o cadeirão onde me sentei e recordei, no passo de uma frase sem nada de especial, aquela tarde em Barcelona. O cheiro de uma madalena é um salto sobre a ponte, sem elástico. Arrumo os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma de um livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.

(Texto publicado na revista Alice, reformulação de um texto antigo).

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