19/03/10

Fome



A morte de Zapata Tamayo, ao fim de 85 dias de greve de fome, trouxe à colação o filme de Steve McQueen, Fome, retrato da greve que vitimou Bobby Sands, membro do IRA, em 1981. Ao contrário de outros filmes sobre o IRA (Jogo de Lágrimas, Em nome do Pai ou Michael Collins), não existe uma vontade clara de McQueen em tornar Sands um simples herói da resistência republicana. As suas preocupações são essencialmente de ordem estética. Cada plano tenta capturar a essência do sofrimento humano, mas o caminho que McQueen escolhe não é retórico e muito menos redutor; ele escolhe a via da beleza, citando pintores clássicos - Caravaggio, a pintura religiosa da Idade Média -, encenando quadros e procurando o ínfimo clarão que pode romper o domínio da violência e do horror. Os prisioneiros mergulhados na sombra da cela, no meio dos próprios dejectos, são mais do que um instrumento de uma denúncia política; transformam-se em arquétipo da submissão e ao mesmo tempo da revolta. Sands e o companheiro de cela são espancados pelos carcereiros, são submetidos às regras da prisão sem hipótese de resposta mas acabam por resistir da única forma que lhes resta: o martírio, a entrega do seu próprio corpo, como Cristo - os corpos esquálidos, as barbas longas, as chagas na carne. O que é extraordinário em Fome é o modo como subtilmente passamos da estética para a ética. Não há uma denúncia clara do estado inglês (apesar da imediatamente reconhecível voz de Margareth Thatcher servir de pontuação nas cenas de maior brutalidade), seria demasiado evidente, mas ao espectador é oferecido um ponto de vista, uma escapatória para os seus preconceitos, na longa cena da conversa entre Sands e um padre irlandês, quando este tenta dissuadir o prisioneiro de avançar com a greve de fome. Absolutamente admirável, o diálogo, e marcante sobretudo porque é a excepção num filme de silêncio entrecortado de ruídos que indiciam a violência (urros, gritos, o matraquear dos cassetetes, os ossos quebrando-se contra as paredes). Na troca de argumentos contra e a favor, é difícil tomar partido, mas acabamos por compreender a posição do prisioneiro, a sua absoluta determinação e, em última análise, a intuição de que a derradeira liberdade - a de poder dispor do próprio corpo (como um body artist) - servirá para derrotar o carcereiro, neste caso o estado inglês. Os nove mortos que se seguiram a Sands - a resistência colectiva - acabaram por provar que o martírio terá sido em vão: nenhuma das exigências foi aceite de imediato. Mas o gesto acabou por fazer a diferença, eventualmente. Toda a Arte pode - e deve - ser política.

(Ver aqui a cena da conversa entre Sands e o padre).

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