31/10/09

Arturo Bandini


O que me levou a comprar o livro de John Fante foi um engano. Claro que a capa e o elogio de Bukowski ajudaram, mas a primeira frase, genial, foi o gancho que me prendeu: "Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor". Ah, se todos os livros que me passam pelas mãos começassem assim, de modo tão exacto e alusivo. O nome da editora, Ahab, é outra pista: algo que se reclama da sombra protectora de Melville merece mais do que respeito; reverência. Não tinha lido Bukowski com atenção até há uns meses, mas depois de duas soberbas narrativas (Mulheres e Correios, este publicado pela extinta - e saudosa - Canguru) e de quase toda a poesia - viva, apaixonada, tão longe da esterilidade de muito lirismo moderno - posso afirmar que já consigo detectar-lhe o estilo à primeira frase. E foi isso que apanhei ao ler aquele começo, as primeiras palavras de Fante. Deste eu apenas sabia que vivera em Los Angeles e que certamente se cruzara com Faulkner, e que fora leitura da geração beat, Kerouac, e principalmente Bukowski. Diabo, Bukowski teve de ir beber a alguma fonte, e este livro, agora quase terminado, prova-o. Li um pouco mais do primeiro capítulo, desfiz as dúvidas - referências a livros de escritores mortos em Bibliotecas Públicas, boémia e derivação, infortúnio, o que mais se pede a um escritor? Antes de sair, comprei o livro - fiz questão disso, não esperei que mo oferecessem - e comecei a lê-lo enquanto esperava pelo autocarro. Aquelas primeiras páginas contêm uma energia semelhante à que anima os livros de Bukowski, o mesmo desespero inábil e uma simplicidade técnica desarmante. Ao fim de cinco páginas, aquilo de que eu devia ter desconfiado: assinado, "Charles Bukowski, 5 de Junho de 1979". Sacana, as palavras eram mesmo dele. Distraído como sou, começara a ler o prefácio ao romance julgando ler já as palavras de Fante. Se parece ser Bukowski, é porque é; por vezes, é fácil diagnosticar a má literatura: quase sempre são maus copistas, plagiadores a soldo do esquecimento; o estilo de um bom escritor é inconfundível. Bom, sorri com o erro - e julgo que a senhora ao lado desconfiou daquele esgar meio louco. De seguida, primeiro capítulo. Mas o espanto não se esgota no prefácio, continua no (verdadeiro) primeiro parágrafo: "Uma noite estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, pois tinha de tomar uma decisão sobre o hotel. Ou pagava, ou saía: era o que dizia o bilhete que a proprietária tinha metido debaixo da minha porta. Um problema bicudo, a exigir toda a minha atenção. Resolvi-o desligando a luz e metendo-me na cama." Não precisava de dizer mais nada para me convencer. John Fante tem tudo o que Bukowski tem, e um pouco mais: Arturo Bandini, alter-ego do escritor, é um Holden Caulfield real, a braços com um hesitante início de carreira e às voltas com uma mexicana, empregada numa tasca, que lhe dá água pela barba. É ingénuo, impulsivo, lírico, deprimido, desabrido, terno e violento, imprevisível. Passeia-se pela Los Angeles dos anos trinta cismando na futura glória literária, carregando o peso de uma educação católica, rogando a absolvição do pecado da luxúria em que incorre quando pensa na bela latina de cabelos pretos. E vou apenas a pouco mais de meio do livro.
Ainda bem que Bukowski me levou ao engano. O acaso é o alicerce que sustenta a vida.

Ahab edições


Passados dez anos como livreiro, é difícil ser surpreendido - positivamente, pelo menos, já que a imaginação das editoras no que diz respeito ao mau gosto é inesgotável; desde livros com fitinhas, livros vendidos dentro de recipientes de fruta, livros com outros livros, livros com máscaras anti-epidémicas, de tudo um pouco tenho visto. Há casos em que parece que o produto vendido não é o livro, mas a sua oferta. Se a isto juntarmos os verdadeiros crimes cometidos contra bons autores - a título de exemplo, lembro a recente reedição de Ulisses e Retrato do Artista Quando Jovem, pela Difel, ou a nova linha gráfica da Teorema para Italo Calvino - compreende-se o desencanto sentido, que se nota mais nos últimos anos - a concentração editorial empobreceu a diversidade, e a sobrevivência dos projectos que interessam, mantidos por verdadeiros editores e não por burocratas vindos dos cursos de marketing, é bastante precária. Por isso, tenho de ficar contente quando aparecem no mercado estas excepções à mediocridade.
A Ahab edições começa por ter um lema admirável - à semelhança do que acontecia com a Cavalo de Ferro, outra editora arrastada para a lama por razões de pura trafulhice, por alguém que não merece outro epíteto que não seja o de canalha - mas isso é outra triste história. "There are some enterprises in which a careful disorderliness is true method". Fantástica frase, retirada de Moby Dick, e uma escolha de risco para bandeira do projecto. Mas começam muito bem - os primeiros livros publicados são objectos belíssimos, dão vontade de folhear e ler: Pudor e Dignidade, de Dag Solstad, A Ilha, de Giani Stuparich, Pergunta ao Pó, de John Fante. Boas traduções, e no caso de Solstad, isso é óptimo, até para contradizer a história recente - Solstad é noruegês, e pelos vistos há tradutores em Portugal das línguas escandinavas, ao contrário do que indiciava a opção da Oceanos, ao traduzir Stieg Larsson do francês. A tradutora de Stuparich é Margarida Periquito, com trabalho mostrado na Cavalo de Ferro, e Fante é traduzido pelo poeta Rui Pires Cabral, que é também um excelente tradutor - dele li em português Kazuo Ishiguro. Elogie-se o que merece ser elogiado - se aparecessem mais ilhas como esta no meio da corrente de maus livros que diariamente inunda a livraria, o meu trabalho seria um mar de rosas. Para descansar de todos os gatos que passam por lebre.

23/10/09

Saramago vs Deus (2)

O nível a que Vasco Pulido Valente desceu hoje, na sua crónica do Público, penso que põe um ponto final decisivo no caso Saramago. Se não começou bem - o anticlericalismo básico do escritor é coisa serôdia, ultrapassada - e continuou ainda pior - com todas as virgens ofendidas clamando por uma suspensão da liberdade de expressão, que costuma ser tão querida por toda a gente -, seria previsível um texto tão orgulhosamente rancoroso e mal-educado como o de VPV. Ao habitual desfile de amargura, maus fígados e snobismo, VPV juntou o insulto e a arrogância de privilegiado que, de resto, está sempre latente em cada alfinetada que dá. Vasco Pulido Valente é, no fundo, o retrato robô possível das elites a que temos direito: um estrangeirado pesporrento que julga que, só porque leu Eça e Ramalho Ortigão, pode criticar quem, por mérito próprio e contra a classe a que VPV pertence, combateu a imobilidade social que durante séculos dominou o país - esta luta é, sem qualquer dúvida, a mais importante herança do 25 de Abril. É contra gente como VPV que a revolução foi feita. Não sei como pode ser classificado o catálogo de imbecilidades por ele alinhavado: o insulto, o paternalismo, a raiva, são coisas que não podem ter desculpa. Prefiro mil Saramagos exaltados e oportunistas a um Vasco Pulido Valente de rei na barriga, importunado com o êxito de alguém que, do seu ponto de vista, é de outra classe social. Certamente que o país bem pode dispensar estas elites.

20/10/09

Extinção


Vamos falar de coisas sérias. Deixemos de parte as distracções que a literatura proporciona - é tão bom amar um autor, é tão bom odiar um autor, e esquecer a obra. Tenho pena que a editora Quasi tenha falido - ou perto disso. Já não deve haver quem duvide de que o aparecimento de grandes grupos editoriais seja prejudicial para o mercado. A Quasi foi importante porque dedicou-se anos a fio a publicar poesia inédita de autores portugueses*. E, contrariando a aura negativa que se foi formando em redor daquele projecto, acho que acertou muito mais do que errou, apenas por ir publicando. Jorge Reis-Sá criou vários anticorpos, mas um editor não precisa de ser unânime no trabalho produzido. O que ele tem para mostrar é um catálogo com dezenas de nomes revelados, alguns bons poetas, outros menos, dois ou três notáveis. Nenhuma editora portuguesa se pode orgulhar de tanto, nos últimos dez anos (e não falo do resto, as traduções e a boa ficção também paridas). A Assírio & Alvim praticamente deixou de publicar novos autores; a colecção Forma, da Presença, é uma memória vaga; a Caminho publicava aqui e ali algum poeta do PCP até ser comprada pela Leya, e desapareceu desta área da edição; a Relógio d'Água também, nitidamente, deixou de publicar poesia, mesmo autores traduzidos, que era uma das marcas da sua política editorial. O que temos, então? O aparecimento de fugazes editores que publicam meia dúzia de livros e desaparecem do mercado, certamente pela intrínseca inviabilidade comercial do género. E o surgimento de novos poetas em semi-edição de autor, como é o caso de Miguel-Manso, por exemplo. Muito pouco.
Vale a pena proteger esta espécie em vias de extinção, a poesia? Bem, esquecendo o facto de a literatura ocidental ter começado com um poema - a Ilíada... na verdade, a principal razão para proteger esta espécie é essa. Defender projectos editoriais que publiquem poesia deveria ser uma causa intocável. Os poetas talvez não precisem de editoras para escrever; haverá sempre alguém que resista à normalização dos costumes. Mas certamente que a poesia devia continuar existir para quem não escreve. A modernidade utilitarista dispensa o uso da inutilidade, e não há coisa mais inútil que um poema - não "distrai", não conta uma história, não ajuda a pessoa. Aceitamos então este avanço em direcção a um risonho futuro sem inutilidades, excrescências de um tempo cuja seta aponta apenas para o futuro? Pergunto novamente: vale a pena defender um ofício inútil contra as investidas da uniformização cultural? Se há pergunta que tem resposta incluída é esta; é lamentável que a poesia se vá tornando um resquício do tempo que passa.

*Não costumo alterar textos publicados no blogue, como é evidente, mas tive de o fazer porque esta frase saiu diferente do que tinha escrito no rascunho inicial. É claro que a Quasi não foi a única editora a publicar novos poetas. Foi a mais importante, sem dúvida. O Dr. Henrique Fialho e o Sr. Fortinbras objectaram esta passagem do texto, por isso corrigi o que estava errado. Quanto ao resto, ficará para outras núpcias.

13/10/09

Humor de risco


Outro exemplo de uma opção editorial esteticamente irrepreensível mas que, do ponto de vista prático, acaba por ser um desastre, é a nova colecção de literatura de humor dirigida por Ricardo Araújo Pereira para a editora Tinta-da-China. Neste momento, esta editora é, de longe, a referência para o sector na área gráfica. O trabalho de Vera Tavares tem sido fantástico, conseguindo estabelecer uma linha gráfica que associamos de imediato à editora, mantendo a individualidade de cada uma das colecções. Os dois títulos agora saídos, Os Cadernos de Pickwick, de Charles Dickens, e Jacques, o Fatalista, de Diderot, são exemplo de um arrojo estético assinalável. Mas ao estilo retro procurado pela designer poder-se-ia ter juntado um mínimo sentido prático, sem perder o ar chique que os livros sem dúvida exibem. O aspecto de livro antigo, sem lombada a proteger os cadernos, que ainda por cima estão unidos por costuras excessivamente frágeis, é um risco. E também não ajuda o facto de capa e contracapa não terem uma película a proteger o cartão de que são feitas. Ao fim de poucos dias na livraria, o papel que cobre esse cartão começou naturalmente a descolar. Dá que pensar na balança entre ganhos e prejuízos, quando os livreiros devolverem o que não se vende. Quantos exemplares estarão, nessa altura, irremediavelmente danificados?

Como não vender um livro

Esta é a capa do livro que reúne textos sobre a obra de Pedro Costa. Um belo objecto gráfico, sem dúvida, mas um conselho: não seria sensato pôr o nome do realizador na capa, um fotograma de um filme, qualquer coisa que fornecesse ao potencial leitor alguma informação sobre o conteúdo do livro? Ou achará o editor que todos os cinéfilos lêem suplementos literários, o mais provável meio de divulgação? Achará ele que o vil comércio conspurca qualquer obra de arte?

01/10/09

Bartleby Cavaco (reposição)

Cheguei a escrever em tempos um texto no qual chamava à colação Bartleby a propósito de Cavaco Silva; fazia, continua a fazer, todo o sentido: "eu poderia fazer, mas não o fiz; prefiro não o fazer; prefiro o silêncio ao erro". Mas os últimos desenvolvimentos da farsa nacional transformaram Cavaco num triste clown de Beckett, trágico, perdido, o derradeiro romântico. Por todo o lado vê inimigos e foge, dança, faz malabarismos, não deixa descansar o país, que deve estar em pulgas (deve, deve) para saber o que verdadeiramente o apoquenta (os esclarecimentos de ontem ainda sujaram mais as águas em que este caso foi navegando).
Mas, não será doutor Cavaco tudo o que aparenta ser? A trupe socratista alegremente canta a senilidade precoce do nosso presidente, talvez para esconder o receio que deve sentir perante o menear de ancas exótico que ele executa com mestria. O que se estará a passar na cabeça do presidente? Escutas, apenas são uma boa ideia enquanto forem tema de uma vaga suspeita; fragilidade do sistema informático, um pretexto para não se falar da suspeita; finalmente, lançar as culpas dos atritos para o PS, uma cortina de fumo para cobrir as verdadeiras intenções do Bartleby de Boliqueime. O Maquiavel da Marmeleira, Pacheco Pereira, já se atreve a sussurrar o que aí pode vir, mas estamos apenas no reino do faz-de-conta, com palminhas e tudo à mistura - preparar-se-à um mini golpe de estado? Haverá reais hipóteses do presidente não pedir ao líder do partido mais votado para formar governo? Dê por onde der, o rastilho para a instabilidade permanente até à queda de um governo minoritário já foi aceso. Será que ainda nos podemos dar ao luxo de pensar que o clown não sabe muito bem o que está a fazer?

(Ah, o texto que publiquei em 2006 é tão premonitório que tenho de o republicar aqui:

Talvez seja um equívoco, mas a meu favor joga o facto de qualquer opinião sofrer do defeito a que se pode chamar de sub-evidência: o que o futuro esconde nem sempre compensa a clarividência em relação ao passado. Mas a julgar pelo que temos visto nestes primeiros dois meses de presidência - Cavaco presidente, Cavaco presidente, habitua-te! - há uma coisa que não vai mudar na figura: o estilo Bartleby. O de Melville, o escrivão que, a certa altura, decide enveredar pelo estranho caminho do desvanecimento. A resposta de Bartleby, plena de um desarmante non-sense, não exige uma réplica ou uma arguência. É assim, subsiste por ela própria. "Preferia não o fazer." Em vão o chefe se esforça para convencer Bartleby da bondade dos seus pedidos, da justeza da sua autoridade, da imoralidade do procedimento do escrivão. A tudo, Bartleby prefere não fazer. Esconde-se a um canto do escritório, alimenta o rancor dos colegas e a ira do patrão, acaba por desaparecer, literalmente, vive no escritório e ninguém - a não ser o advogado que o contratou - dá pela sua presença. Cavaco, desde o "Tabu", cultiva o estilo Bartleby. "Vai recandidatar-se?" "Preferia não responder." "Candidata-se a presidente?" "Preferia não responder." "O aborto, que tal?" "Preferia não falar disso agora." "Poderes do presidente?" "Preferia não emitir uma opinião neste momento." "Lei da nacionalidade?" "Preferia não levantar ondas." "Aprova a política do governo para a saúde?" "Preferia abster-me de emitir uma opinião sobre o assunto." E assim estamos. Mutismo e respostas evasivas. Quem temia - ou desejava - uma vigência de Cavaco agressiva e conflituosa pode ir tirando o cavalinho da chuva. Esta vai ser a presidência Bartleby. Foi assim que ele conseguiu ganhar - à segunda, não esquecer - o voto dos portugueses, será assim que ele irá conquistar o coração de um povo. Combate de uma vida. Como em Melville, as respostas de Cavaco nada dizem porque nada pretendem dizer. Não ouvimos da sua boca a negativa peremptória ou a retumbante positiva, tudo é sim, mas se, talvez. "Preferia não o fazer, que maçada. Pensar, preocupar-me, levantar ondas, que sentido há nisto tudo?" Bartleby, o escrivão, acaba como uma personagem de Beckett - ah, bendito diacronismo! - prostrado contra o solo sob o peso da existência. Não se recusa a ser. Apenas preferia não o ser. Diferença fundamental, também em questões de retórica. Passando despercebido por entre as gotas de chuva.)

Queria dizer-vos

Photobucket