29/03/07

Crítica do Contemporâneo


Começa hoje na Fundação de Serralves "Crítica do Contemporâneo" um ciclo de conferências sobre o estado político actual trazendo ao Porto Giacomo Marramao (29 Março), Jacques Rancière (12 Abril), Peter Sloterdijk (3 Maio) e Giorgio Agamben (8 Maio) sempre às 21.30.

[Susana Viegas]

28/03/07

Salazar

Entre recordar e esquecer, aposta-se o valor da História. E recordar é sobretudo registar os acontecimentos e as suas consequências. De outro modo, recorrendo a construções mentais da memória, cria-se um mundo diferente daquele que aconteceu. Quem tem acesso a estes registos da História, às linhas criadas pela estatística, aos nódulos formados pelas datas importantes, às dobras no tecido da dimensão temporal provocadas pelas grandes catástrofes da Humanidade? Quem lê, quem aprende, quem apreende o real valor do conhecimento. Apenas os que distinguem informação de conhecimento se incluem neste grupo; a mediatização dos acontecimentos cria bolhas de importância que pouco ou nada têm a ver com o verdadeiro impacto na sociedade ou na História. Famosos, conquistas desportivas, grandes personalidades da nação. Para além do mais, a História dispensa os absolutismos de uma sociedade desinformada. Nunca deixa de ser um conjunto de pontos numa superfície, a que apenas conseguimos aceder em parte, como se pousássemos os nossos olhos numa folha de papel sobre uma mesa a partir de um plano situado ao mesmo nível que a mesa. A História esquece o inútil, o desnecessário. A sociedade mediática sobrevaloriza o absurdo, o passageiro, o que nunca verdadeiramente existe, no sentido em que não se chega a inscrever no inconsciente colectivo de um povo.
Algumas semanas depois da RTP ter comemorado com bolorenta pompa e circunstância o seu aniversário, serviu à massa indiferenciada de espectadores o mais indigesto prato que se pode servir: aquele que já passou há muito do prazo. Não houve apenas um conjunto de circunstâncias a rodear a votação do concurso televisivo; houve um movimento de silenciados do antigo regime, os que finalmente tiveram a oportunidade de expressar em público o que foi durante trinta anos reprimido. A memória que dura o tempo de uma vida não esquece o tempo idílico da infância; para além disso, recupera e reconstrói a realidade rasurando todas as manchas e defeitos que aquela vai ganhando. É por isso natural que muitos dos que admiram Salazar tendam a desvalorizar a sua tendência para a, digamos, opressão totalitária, em favor das suas supostas virtudes salvíficas: o homem que recuperou a economia; o homem que evitou que Portugal fosse à guerra; o homem santo, defensor da fé católica no país, contra a invasão ateia que se vivia no resto do mundo civilizado.
Salazar imaginou um país, no sentido em que criou uma série de imagens que se fixaram no inconsciente colectivo português, reorganizando a consciência de um tempo, tanto presente como futuro. Salazar criou aqueles que agora votaram nele. E, vamos lá ver bem as coisas, já ultrapassámos o complexo de Édipo; no fim de contas, apenas 70000 de nós votaram repetidamente nele.

[Sérgio Lavos]

27/03/07

O nosso utensílio de cozinha preferido*

Para não dizer muito mais sobre o assunto, deixo aqui um link para um texto da Fernanda Câncio. 70 mil votos fazem a diferença? 70000 almas penadas que ainda sonham com o mais triste ditador da história da Europa? À nossa escala, sem a grandiosidade amoral de outros países, passámos o que passámos e andamos há trinta anos a tentar esquecer a tristeza. Há quem prefira viver no passado. Mas até esses, meus amigos, vão acabar por cair de maduros.

*Expressão cunhada pelo Pedro Vieira.

[Sérgio Lavos]

24/03/07

Os amigos

Não sei se repararam, mas o amável exercício da amizade a que Vasco Pulido Valente (VPV) se sujeitou no Público é uma aguçada espada de dois gumes apontada na direcção de Paulo Portas. O Luís M. Jorge acha que VPV diz bem de PP. Mas se lermos de fio a pavio o artigozinho, não encontraremos um único elogio ao homem, ao político, ao estadista, ao putativo salvador do naufrágio em que a direita embarcou há algum tempo - e isto, inclui, claro, o mais desfasado partido do espectro político, o CDS, ou PP, ou CDS-PP, ou o que lhe queiram chamar.
A verdade é que o malabarismo estilístico de VPV pode ter um de dois resultados, e parece-me que neste caso conseguiu exactamente o oposto do que admite fazer atingindo aquilo que pretendia realmente atingir. Eu explico: nada há na crónica que indique que VPV coloque Paulo Portas num patamar mais elevado do que a bitola com que aquele costuma despachar a classe política em geral. Já conhecemos o rol de lamentos: a degradação da classe, a incompetência, o populismo e a falta de preparação para os cargos, sobretudo a ausência de uma aura de nobreza que, diz-se, em tempos era associada aos políticos. Não é preciso ler Platão para acreditar em utopias. Mas, na realidade, quantos homens verdadeiramente grandes eram políticos, nos últimos cem anos. 5? Mais do que isso? Há, no entanto, um mito a perpetuar, uma necessidade extrema de acreditar que a liderança de um povo é uma tarefa destinada aos melhores Homens disponíveis. Nunca foi assim - e a discussão acerca das habilitações académicas de José Sócrates é mais uma prova disto. O nosso homem da grande área netse jogo é VPV. E caramba, se dá gosto olhar para as movimentações linguísticas que ele ensaia, o estilo gingão de velho número dez ameaçando e fintando, finalmente disparando sem hipótese para o adversário.
Mas o estilo não é tudo, e revela quase sempre as fraquezas de quem se perde em rodriguinhos desnecessários. É preciso estar atento; o que VPV faz na crónica, é olhar para a esquerda e centrar para a direita, distraindo o adversário. Dizendo mal dos inimigos de Portas, repisando a tradicional litânia junto ao muro das lamentações a que estamos habituados - há uma senhora, neste caso, que é indirectamente visada. Nem por um momento se nega que Portas e os seus partidários tenham sido inocentes na vergonhosa situação que se viveu no passado fim-de-semana. Em nenhuma altura se questiona a capacidade camaleónica de Portas e o seu valor intrínseco: será bom ou mau ele ter andado aos ziguezagues todos estes anos, em busca do palanque certo para se colocar em bicos de pés, atropelando quem foi encontrando pelo caminho? Enquadrar-se-à a condução perigosa de Portas nos parâmetros de excelência que VPV defenderá (presumo eu) para a classe política? - apesar de nunca sobre eles ter escrito, dado a sua tendência para revelar apenas o negativo dos retratos tirados.
Será Paulo Portas o modelo de político a seguir, ou aquele "óptimo ministro da Defesa" é um sapo vivo que chega, por momentos, a soar a ironia camiliana? Que espécie de impulso leva VPV a considerar, sem se rir por dentro, ser perfeitamente "legítimo" ameaçar e insultar e querer tomar pela força um partido político? Onde pode residir a credibilidade de VPV, que parece ser historiador, quando troca a verve e a saudável acidez que reserva para quase todos, justa ou injustamente, por uma mal-disposta e amena indignação esgrimida em nome de uma, mais do que provável, amizade a um escroque? Terá perdão? E terá Portas percebido o que VPV acha mesmo dele?

[Sérgio Lavos]

23/03/07

Bill Shakespeare


Um pouco de Hugh Laurie (com Rowan Atkinson) muito longe de House.

[Sérgio Lavos]

Ben Callaway

Version, 2005-06, Vídeo PAL, cor, som, 4'23''

Benjamin Callaway (natural de Bristol, 1978) tem na Culturgest a primeira exposição individual onde apresenta o trabalho vídeo de found-footage que, nas palavras de Augusto M.Seabra, "se considerarmos o campo da música pop, constatar-se-á que o remix é uma prática insistente no hip-hop e genericamente nas músicas de dança, mas também que a agregação de imagens pré-existentes é bastante corrente nos vídeos musicais. Se mudarmos de campo de observação, para o cinema ou para as artes visuais que implicam imagens em movimento, o conceito é o de found footage – de facto muito anterior. Numa genealogia directa, poder-se-á dizer que a prática sistemática de found footage remonta aos trabalhos de Bruce Conner, em concreto a A Movie (1958), obra cujo título, qual sans titre, é emblemática do anonimato autoral das imagens colhidas e remontadas.(...) Version – remix, ou talvez o modo último de apropriação, um palimpsesto, ou, como a definiu Craig Owens, uma alegoria: “a alegoria torna-se o modelo de todos os comentários, de todas as críticas, na medida em que estes têm a ver com a re-escrita de um texto original nos termos do seu significado figurativo. A imagem alegórica é uma imagem de que nos apropriámos; quem escreve alegorias não inventa imagens, confisca-as, reivindica o direito daquilo que tem um significado cultural e coloca-se como seu intérprete”. (retirado do site da Culturgest)

Para ver só até este domingo, dia 25 de Março na Culturgest de Lisboa.


[Susana Viegas]

20/03/07

O Bom Alemão

Não acho que "O Bom Alemão" seja um anacronismo. Para além de o filme ser um exercício de estilo de um cinéfilo, é principalmente um filme pós-moderno, com todas as marcas de uma época em que a recriação e a citação são valorizadas a um expoente máximo. Há outros exemplos no cinema, o mais conhecido é o "Psico" de Gus van Sant. Neste caso, a homenagem a Hitchcock serve-se fria, feita de uma ironia e subversão que, de resto, já não estavam de todo ausentes do original filmado a preto-e-branco. O camp é sempre um objectivo para van Sant - e colorindo a película, o filme chega lá.
"O Bom Alemão", por outro lado, é uma obra que se leva mais a sério. A subversão, para Sodebergh, deve limitar a irrisão que lhe está associada. Quando vemos a cena da partida no final, mimetizando "Casablanca", acreditamos mais na amargura cínica de "O Bom Alemão" do que no romantismo inverosímil do filme de Michael Curtiz. Do mesmo modo, a evocação da Berlim em ruínas não tem a motivação de cariz ideológico de "Alemanha, Ano Zero", de Rossellini. Já pensámos a guerra. Agora tornamo-la cenário de um tempo perdido. O filme de Rossellini meditava sobre a devastação, Soderbergh cita apenas os cenários, vazios de conteúdo histórico mas significativos do ponto de vista estético. O pastiche é assim uma forma de recriar a memória - primeiro, cinéfila, e depois a da realidade em si. Haverá outro modo de tornar a arte útil?

[Sérgio Lavos]

17/03/07

Manual de conversação


Agora que contamos os dias para a estreia de INLAND EMPIRE de David Lynch (para 5 de Abril), um tempo de reflexão da obra com um Manual de Conversação Lynch-Razão, como se isso fosse possível. O próprio recusa-se a explicar ou a interpretar os filmes que faz, não aprova nenhuma análise psicológica da sua obra, seja análise simbólica, lacaniana ou freudiana. Afirma que com a psicanálise perde-se toda a arte, o mistério, o abstracto, quando o que ele quer é manter o mistério, trabalhar um ponto desconhecido da nossa mente que outros filmes não fazem trabalhar. Portanto, as análises lacanianas de Zizek estão fora de moda, ultrapassadas pelo esquema edipiano, falocêntrico que, no fundo, resume o inexplicável a três intervenientes: sexo, pénis e frustração; e foi com este esquema que Zizek muitas páginas escreveu sobre Lost Highway e a ejaculação precoce de Fred Madison ou o coito interrompido de Pete Dayton ... É um ponto de vista mas, para Lynch, é um ponto de vista que não vê o essencial; o essencial é o ilógico, os recantos escuros, os close-up excessivos, imagens mentais que não levam a respostas nenhumas por mais voltas que se dêem ao argumento. Por isso, bem mais rica é a esquizoanálise anti-edipiana de Gilles Deleuze e Félix Guattari - o cinema de David Lynch é uma arte de sensação e não de explicações. Francis Bacon (sobre o qual Deleuze escreveu Logique de la sensation) é o pintor que mais influenciou Lynch, ao ponto de este querer levar o movimento dos seus primeiros quadros a um extremo tal em que já era cinema e não pintura. A esquizoanálise leva-nos a então a um Manual de Conversação Lynch-Deleuze.
Sem psicanálise, ficamos com Song to the siren de Tim Buckley ( Starsailor, 1970), música que surge em Lost Highway na versão dos This Mortal Coil e que desde Blue Velvet David Lynch pretendia usar mas que, por falta de dinheiro, não o pode fazer na altura. Com esta música cria o tom da transformação de Fred em Pete e da recusa de Pete por Alice - You' ll never have me - e Fred Madison volta ao som do canto onírico da sereia. A pedido dos This Mortal Coil, a música não foi inserida na banda sonora do filme, onde encontramos David Bowie, Marilyn Manson, Rammstein, The Smashing Pumpkins e Nine Inch Nails.

"Song to the Siren"

On the floating, shapeless oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your eyes.

And you sang "Sail to me, sail to me;
Let me enfold you."

Here I am, here I am waiting to hold you.
Did I dream you dreamed about me?
Were you here when I was full sail?

Now my foolish boat is leaning, broken love lost on your rocks.
For you sang, "Touch me not, touch me not, come back tomorrow."
Oh my heart, oh my heart shies from the sorrow.
I'm as puzzled as a newborn child.
I'm as riddled as the tide.
Should I stand amid the breakers?
Or shall I lie with death my bride?

Hear me sing: "Swim to me, swim to me, let me enfold you."
"Here I am. Here I am, waiting to hold you."

[Susana Viegas]

16/03/07

Moral

Ainda a propósito de "Diário de um Escândalo", lembrei-me de uns textos escritos por Pedro Mexia no seu anterior blogue Fora do Mundo, em que ele fazia a apologia do gosto por ninfetas. É um risco defender tais coisas num tempo de severa perseguição a quem se atreva sequer a imaginar que uma rapariga de quinze anos possa ter alguns atractivos de ordem sexual. As confusões entre pedofilia, pederastia, crime e inclinação sexual, assim como a mistura entre moral privada e pública e verdadeiro crime, fazem com que, por exemplo, há alguns anos atrás uma professora norte-americana tenha sido condenada a alguns anos de prisão por ter mantido uma relação com um aluno, com quem aliás veio depois a casar. O que, sem dúvida, na altura me fez sorrir quase na mesma medida com que me indignei com o caso. A questão é: onde acaba a diferença sexual e começa o crime? A linha tem de ser traçada. As sociedades ocidentais definem uma idade, 16 ou 18 anos, mas a verdade é que as únicas razões que sustentam este limite são de natureza cultural. O que deveria ser tomado em linha de conta, o consentimento dos dois (ou mais) parceiros, é apenas uma desnecessária abstracção, tanto para a moral colectiva como para os legisladores. No filme de que falo, a professora nunca se sente arrependida do que fez, apenas se sente constrangida pela inevitável perseguição que os media lhe movem, pelas pressões da sociedade a que pertence. Quando, a determinada altura, a mãe do adolescente irrompe pela casa de Sheba dentro, agredindo-a e insultando-a, o que está verdadeiramente em causa não é a natureza do acto da professora - consentido pelo adolescente (as condicionantes da sexualidade masculina não permitem que seja de outro modo); é a condenação do contexto libertário da atitude de Sheba. É a imposição de um modelo moral ao resto do grupo, assim como uma reacção de natureza psicanalítica; a mãe reage de forma violenta porque sente que o filho lhe escapa, sente que o complexo de Édipo é naquele momento apenas uma memória distante; sente que perdeu o filho para outra mulher.
Mas, sejamos verdadeiros, qual é o homem heterossexual que não sonha, durante a adolescência, com uma situação como a que é retratada no filme? Quantas professoras não terão habitado os nossos sonhos, quantas mulheres mais velhas não terão estimulado a imaginação de modo decisivo para a construção de uma personalidade? Quem nunca tiver pecado, que atire a primeira pedra; ou então que aprove legislação que criminalize os nossos mais belos sonhos.

[Sérgio Lavos]

!!!

A tocar na barra lateral, os !!! (toda a gente sabe como se pronuncia), com uma faixa do último álbum, "Myth Takes".
A questão é: como fazer música de dança quase sem recorrer a sons electrónicos? Ouvindo os !!!, aproximamo-nos de uma possível resposta. Bateria, baixo, guitarra e alguns sons de sintetizadores analógicos, um ritmo imbatível para acompanhar com a anca. Esqueça-se o refrão martelado até entrar no ouvido ou a construção tradicional de uma música pop - verso, refrão, verso, refrão. Junte-se esta vontade de ignorar os princípios básicos da pop a um gosto pela música funk dos anos 70 e a uma atitude provocatória nas letras - liberal, sempre, mas sem a chatice do verdadeiro empenhamento político - e temos um dos três melhores álbuns do ano, até agora. Para ouvir ao vivo em Abril, no Coliseu.

(a melhor recensão que eu li aqui.)

[Sérgio Lavos]

15/03/07

Compre, não leia

Comecei a ler um artigo da London Review of Books sobre duas novas versões do clássico da língua inglesa "Sir Gawain and the Green Knight", e pensei: o texto que irei escrever sobre isto conseguirá afastar qualquer leitor desde a primeira linha. Quem se interessa pela poesia medieval inglesa ou pela opinião de um crítico com muito tempo em mãos para gastar? Keep it short, keep it simple. O uso de expressões em língua estrangeira é também um claro sinal de pedantismo. Contudo, atrevo-me a perguntar: não será batido reclamar do uso de expressões em língua estrangeira? Entre ser pedante e repetir lugares-comuns, quem se atreverá a escolher? Já se foram todos? Então é assim: o texto, escrito por Frank Kermode, consegue ter mais interesse num parágrafo do que a melhor recensão publicada num jornal português na última semana sobre a última excitação editorial. Nem sei bem qual é; tenho reparado que a imprensa portuguesa tem-se dedicado de corpo e alma à nobre arte da investigação do bas-fond social - apenas assim se explica a profusão de reportagens, entrevistas e outras variações propagandísticas à volta de uma nota só: a arte de vender o corpo.
Querem o link? Aqui está. Repare-se na introdução, onde Kermode fala da obra e do seu historial e importância para a literatura inglesa. Note-se as referências intertextuais, a criações que se inspiram no clássico, a outros estudiosos da obra. Tenha-se em atenção o elegante uso da linguagem, intercalando explicações técnicas (mas nada fastidiosas) com observações irónicas enriquecidas pela diversidade vocabular, principalmente no uso de adjectivos. Adjectivos... a classe de palavras preferida de qualquer crítico médio português. Mas atenção, sempre utilizados com comedimento, ousando pouca variação nas combinações substantivo/adjectivo (um pouco à imagem das equipas de Mourinho). Mas Kermode abusa. E julga que pode criar interesse no leitor, cativá-lo para a leitura de um texto exigente mas nem por isso menos obrigatório. Didáctico? Não, isso é chato, cheira a escola. É apenas a arte de bem escrever sobre livros. Há gente a nos jornais portugueses com esta facilidade na escrita? Poucos, sobrevivemos ainda na era da formatação do estilo. E ainda por cima, deixámos de ter polemistas, a Internet e as auto-estradas tornaram o país ainda mais pequenino e medroso.
Escrever crítica literária não tem de ser um frete de jornalista nem um exercício teórico sem um pingo de originalidade. Há uma dimensão criativa que deveria ser obrigatoriamente procurada pelo crítico, tendo em conta que os textos destinam-se a ser lidos por um público interessado, que espera mais que um resumo ou uma paráfrase do texto comentado. Quando não é citação directa do livro até enjoar - quase sempre exemplo na crítica de poesia.
O que me parece positivo no novo Ípsilon, apesar da desorganização geral do suplemento, é o esforço evidente de dar espaço à reportagem, seja em forma de entrevista ou artigo de desenvolvimento sobre um tema, complementando as recensões que aparecem nas últimas páginas. Exemplo disto é o texto de Luís Miguel Queirós no último número a propósito da saída do livro de Colm Toibin, "O Mestre". Ou o artigo, mais ou menos polémico, sobre o plágio, há umas semanas.
Talvez um dia cheguemos a uma harmonia próxima da qualidade dos suplementos literários de alguns jornais estrangeiros. Quando os nossos suplementos deixarem de servir de mero veículo para as estratégias promocionais das editoras ou para a livre expressão de um gosto pessoal do editor ou jornalista. Mesmo que esse gosto seja sempre o ponto de partida do crítico. A bem da salubridade da literatura.

[Sérgio Lavos]

14/03/07

Diário de um Escândalo

Por vezes, há filmes menos bons, filmes cujas fraquezas não deixam que os pontos fortes acabem por resistir à avaliação totalitária do objecto. Um verdadeiro mau filme não persiste por mais do que algumas horas, aquelas que perdemos a pensar em que outra actividade poderíamos ter gasto o dinheiro do bilhete. Ou os minutos que gastamos a resumir às pessoas que conhecemos a história enquanto criticamos tudo o que é obrigatório criticar. Mas claro, há sempre ideias brilhantes clamorosamente mal trabalhadas. Grandes filmes falhados. Por uma ou outra razão.
E há os outros. Os que nunca seriam grandes filmes, ou quase - nunca se sabe o que pode um génio fazer com um mau argumento em mãos. Mas recuse-se pensar nos acasos da História. Produzir uma obra de arte é reduzir as possibilidades a um todo fechado. Depois de chegar ao público, o círculo extingue-se. Nada a fazer.
Os outros. Por exemplo, "Diário de um Escândalo", de Richard Eyre. É necessário fazermos um esforço para ignorar o duelo de actrizes - Cate Blanchett e Judi Dench salvam uma obra menor, filmada como se fosse um telefilme. E a música de Phillip Glass, pomposamente vazia, a sublinhar as cenas fundamentais, cortando como um punhal a tensão fabricada pelos actores (Billl Nighy tem também uma excelente prestação), é a cereja azeda em cima de um bolo por si só já muito pouco saboroso.
No entanto... o desperdício é enervante. Os diálogos, escritos por Patrick Marber, são por vezes tão certeiros como uma flecha lançada por Guilherme Tell. Não tendo assistido a "Closer", a surpresa acaba por obrigar a manter o argumentista debaixo de olho. E, para além dos diálogos, há a história inventada por Zöe Heller (a autora do romance original). Talvez seja ela a culpada de, passados cinco dias, ainda regressar ao filme. A complexidade dos temas tratados - a luta de classes, a frustração e a repressão sexual - é complementada pela aproximação heterodoxa da romancista - e de Marber. Sheba (Blanchett) tem um caso com um miúdo de 15 anos, mas está longe de ser considerada uma agressora sexual. Por outro lado, Barbara (Dench) não é a manipuladora frustrada, a personagem malévola que aparenta ser ao início (no entanto, alguns críticos acreditaram no carácter plano da construção de Dench). A fragilidade sublimada de Barbara levou-me, a determinada altura, a simpatizar com a sua maldade forçada. E a antipatizar com o snobismo infantil e caprichoso de Sheba. A velha luta de classes, claro. Sheba é uma ex-punk, filha de pai rico e famoso que (imaginamos) se rebelou contra a autoridade conservadora casando-se com um homem mais velho quando tinha vinte anos. Barbara compreende logo isto - e ataca a presa pelo flanco mais fraco, fareja a sua ingenuidade rebelde. E a frustração de estar encarcerada numa vida familiar pacata há demasiado tempo. Barbara é a filha da classe média que nunca conseguiu pertencer à classe superior (como Virginia Woolf, que não é apenas uma referência surgida a meio de um diálogo no filme - há uma rima irónica com o "quarto que seja seu" onde Sheba se refugia, um privilégio dos abastados). Sheba é a filha rica enfastiada com o bem-estar material. Mas nada é assim tão claro. O terceiro termo da equação, o adolescente, é a prova de uma continuidade na luta de classes - e a refutação desse conflito. Ele mente quando apela para o complexo de culpa de Sheba - não é maltratado nem pobre, apesar do sotaque cockney e das referências pop diferentes da professora (a distância entre Siouxie and the Banshees e The Streets). A manipulada Sheba cai numa teia tecida pelos seus preconceitos e sentimentos de culpa de classe. Mas qual o adolescente que não gostaria de lançar a rede à bela Cate Blanchett?

[Sérgio Lavos]

10/03/07

Lição de dialéctica


Half Nelson (Encurralados) é o primeiro filme de Ryan Fleck (que desenvolve a sua curta-metragem Gowanus, Brooklyn (2004) sobre a relação entre uma aluna e um professor) que nos conta a história de Dan Dunne (Ryan Gosling), um professor de História numa escola de Brooklyn, viciado em crack, solitário, desiludido, que entrega toda a sua energia às aulas ensinando dialéctica a adolescentes com problemas sócio-económicos, em vez de lhes ensinar o tradicional rol de factos históricos sobre lutas pelos direitos civis e mudanças na sociedade. Isto agravado, ou atenuado, pela amizade silenciosa que vai mantendo com a sua antítese, Drey (Shareeka Epps), uma aluna cúmplice da sua dualidade. Estas aulas são a base para o desenvolvimento do argumento, simples e directo, porque toda a mudança se resume à luta de opostos, à relação inconciliável dos contrários numa fantástica metáfora de vida. Através de episódios paralelos entre Dan e Drey damo-nos conta que o que inicialmente pode parecer pedantismo indie americano logo se torna uma experiência intensa vivida pelos excelentes actores numa luta para aguentarem mais um dia, entre a euforia das aulas e a solidão fora delas, entre a impossibilidade de largar a dependência e a inevitabilidade de nela entrar. A síntese é uma possibilidade forte mas insegura, negada pela circularidade histórica, escrevendo, de um modo amoral e brilhante, os episódios balançados pela música sempre presente dos Broken Social Scene. Formalmente, um registo ainda para a câmara ao ombro e o perfeito formato fotográfico quadrado da imagem e para os locais exteriores de filmagem. À saída, a sensação de que a melancolia não tem de ser necessariamente deprimente.

[Susana Viegas]

08/03/07

Entrada de diário (3)

Há cada vez menos urgência em comunicar. O sensato seria remeter-me ao silêncio; não trairia assim a minha segunda natureza. Cabisbaixo, introvertido, de trato difícil. Cria-se uma verdade; habituo-me a ela; brinco com as possibilidades; invento outra personalidade; baralho e volto a dar, penso em regressar ao meu velho eu.
Mas exponho-me, eu sei. O que mais me impressiona - não é medo, nem vergonha - é a descoberta daqueles que me conhecem fora daqui. Imagino muitas vezes que olham para mim e vêem alguém diferente daquele que escreve. Não consigo ser vinte e quatro horas por dia eu próprio. Acontece bastante ler-me aqui e descobrir essa falha, esse rasgão na realidade, quase conseguindo vislumbrar o que está por detrás das palavras. Ah, mas a imaginação é bastarda; o mesmo passo que permite esse pequeno desfasamento da realidade ("time is out of joint"), também me leva a território conhecido. E o silêncio manda em mim quando aí entro - a língua é um intervalo no sentido, do mesmo modo que o som o é no silêncio. Mas falo da vida, essa coisa imitável que tantas vezes não coincide com a ideia que fazemos dela.
Há cada vez menos urgência em comunicar. Por isso talvez não entenda porque há ainda alguns que me lêem - é mentira, juro, é tudo um grande acaso, uma cadeia de acontecimentos sucedendo-se de forma aleatória. Aos que o fazem a sério, apenas posso prometer continuar a escrever sobre nada. Insisto.

[Sérgio Lavos]

07/03/07

Jean Baudrillard


Jean Baudrillard morreu aos 77 anos. O autor corrosivo e niilista da sociedade e cultura contemporâneas, é autor de livros obrigatórios como Simulacros e Simulação e A troca simbólica e a morte onde desenvolve os conceitos filosóficos de simulacro e hiper-real. O que mais admira ao ler o artigo de hoje no Público (aliás, com informação muito semelhante ao Nouvel Observateur) é o facto de um professor universitário se preocupar mais em fazer futurologia "o docente não prevê grande futuro para a obra de Baudrillard, para além do contributo para "a constituição do imaginário contemporâneo", "patente no Matrix dos irmãos Wachowski e no eXistenZ de David Cronenberg" do que em anular a ideia feita de que The Matrix é um filme fiel à filosofia de Baudrillard; preocupado com a bola de vidro, não se deu ao trabalho de questionar um dado errado - The Matrix não retrata fielmente o pensamento de Baudrillard.

É verdade que não há consenso relativamente ao destaque que o filófoso possa vir a ter na história da Filosofia do século XX e também é verdade que os irmãos Wachowski se inspiraram em Baudrillard - recuperam a frase "o deserto do próprio real" (Simulacros e Simulação, Relógio D'Água, pág.8). O filme é obviamente inspirado em Jean Baudrillard (Neo esconde os "paraísos virtuais" num livro deste filósofo), ainda que este, numa entrevista dada ao Nouvel Observateur de Junho 2003, não aceite apadrinhá-lo e afirme mesmo ter recusado participar no argumento. Neste filme, há uma realidade verdadeira paralela ao real virtual, ou seja, mantém as categorias tradicionais entre o verdadeiro e o falso, o real e o artificial. A frase "o deserto do próprio real" (Slavoj Zizek também partiu desta frase para uma enorme análise do filme) é recuperada porque o real de Neo está desertificado, é virtual, mas Neo pode ver a verdadeira realidade, a comunidade de Zion que resiste à interferência simuladora. Ora, isto não é de todo o que Baudrillard afirma sobre a realidade do virtual ou sobre a totalidade de simulacros.


[Susana Viegas]

03/03/07

A razão de ser


[Sérgio Lavos]

Um ano

Este blogue chega hoje a um ano de existência. Julgo que não fazer balanços que incluam número de visitantes e coisas ganhas no último ano é uma medida de bom-senso. Fundamentalmente porque escrevi aqui para meu próprio proveito, e com resultados que julgo terem sido, de certo modo, positivos. Esta nova forma de comunicação não tem mais nem menos importância do que outra qualquer. Quem a ela pertence certamente não precisa mais dela do que apenas o estritamente necessário. O que julgo querer dizer é que o facto de ainda continuar a escrever no blogue é uma consequência necessária da inércia; ainda continua a existir, por isso escrevo. Sobre as minhas coisas, sempre, sem pensar em quem ou como me lêem. Lamento um ou outro texto, mas não os apago. Gostaria de escrever menos sobre a realidade que foge e mais sobre aquilo que se poderá descrever como "a intangível matéria que perdura", mas não sei a que esta última expressão se refere. Ninguém sabe. Quase desde o início, este tem sido um blogue a quatro mãos. Sem obrigatoriedade, a única maneira de retirar prazer da rotina. E o tempo que virá será sempre pouco. Falta dizer tudo.

[Sérgio Lavos]

02/03/07

Cartas de Iwo Jima

As notícias sobre a excelência do último filme de Clint Eastwood, "Cartas de Iwo Jima", terão sido exageradas. A unanimidade dos críticos portugueses é um acontecimento raro (quem se lembra da última vez que sucedeu o fenómeno?), apesar de, ultimamente, Eastwood se ter transformado no realizador americano a adorar - repete-se o lugar-comum do último dos clássicos. Senti-me impelido (empurrado?), apesar da escassez do tempo em mãos - quem disse que a crítica não é um exercício de publicidade indirecta? Não me interessa saber se o crítico é ou não elitista; Luís Miguel Oliveira, Bruno Sena Martins e Alexandre Andrade têm discorrido sobre o tema com mais ou menos acerto. De resto, o maior blockbuster de sempre, "Titanic", que eu me lembre também conseguiu um estranho consenso crítico na época. Não percebo o que é ser elitista no exercício da crítica, mas entendo o elitismo no gosto. Apenas preferia ver outro termo utilizado: exigência. De quem vê e de quem faz. O criador deve esperar que a leitura feita da obra criada ultrapasse as suas próprias expectativas; a interpretação não acaba na sala de montagem, continua no espírito de cada espectador. E este deve exigir que a obra coloque problemas, deve desejar que não lhe seja tudo oferecido de bandeja. Elitismo é uma etiqueta colada por quem não espera nada de um filme a quem acha que o exercício da crítica exige uma independência em relação à opinião de quem pouco exige do cinema. De tanto malabarismo argumentativo, acabo por me aproximar da conhecida resposta de João César Monteiro a um jornalista, à saída da sua "Branca de Neve". Quem emite uma opinião sobre um filme - não passa disso mesmo, opinião - deveria ter em mente a frase de César Monteiro.
Mas Eastwood. O filme é um clássico instantâneo. A sério. É como a sopa: junta-se água e pronto. Por vezes interessa deixar o pensamento à porta e classificar pavloveanamente as coisas: clássico, e está despachado. A serenidade, a segurança, as citações - John Ford, Kurosawa, vi escrito. Mas... Spielberg, acrescento eu. É bom? Não, não não é. Enquanto via o filme, aquilo que mais me rondou o espírito foi "O Resgate do Soldado Ryan", obra de nenhuma maneira prima, incompleta e imperfeita do melhor realizador de filmes de acção de sempre. "Cartas de Iwo Jima" tem demasiados defeitos para tanto elogio produzido. A montagem - intercalando o huis clos das grutas com a armada americana a caminho - linear e aqui e ali incongruente, não acompanha a tensão dramática de cada sequência. Se Eastwood não gostasse tanto de contar uma boa história (e não tivesse Paul Haggis a trabalhar no argumento), poderia ter realizado uma obra-prima abstracta sobre a guerra - a claustrofobia, o medo, a expectativa. Ah, mas é claro, Terence Mallick já fez isso (e Copolla, em "Apocalypse Now", mas este acaba por ser mais uma meditação sobre o mal do que outra coisa). Mallick já filmou a poética da máquina de guerra em "A Barreira Invisível". O que restava a Eastwood? Criar um filme com uma fotografia radiante, um timing dramático perfeito (apesar do estilo de representação do actores japoneses ser ocidental - longe, longe, do silêncio e da crispação calada e séria de Kurosawa, por exemplo), um panfleto anti-guerra eficaz e relativamente equidistante em relação aos dois lados. Digo "relativamente" porque me parece que continua a existir um preconceito no retrato que é feito do soldado japonês. Aqueles com quem o espectador se identifica agem como um ocidental em guerra - a cena em que um soldado americano é recolhido pelos japoneses é sintomática. Os que se distanciam da empatia com o espectador aproximam-se mais do modelo do soldado japonês tradicional. E claro, a paixão que os dois "heróis" partilham pelo american way of life - a América, mesmo quando se coloca do lado do Outro, não deixa de se celebrar a si própria e aos seus valores.
Um clássico? De Eastwood, prefiro "Imperdoável", "As Pontes de Madison County", mesmo "Mystic River" e "Million Dolar Baby". São quatro - quatro - que bastariam para provar o lugar do realizador na História do cinema. "Cartas de Iwo Jima" é bom, mas não se aproxima sequer de clássicos como "A Barreira Invisível", "Apocalypse Now", "O Caçador", de Michael Cimino, ou, porque não, o filme mais realista (?) jamais feito sobre a guerra: "Les Carabiniers", de Jean-Luc Godard.

[Sérgio Lavos]