17/06/07

David Fincher

Apenas tinha visto "Se7en", de David Fincher, uma vez. A oportunidade de rever a obra surge na altura exacta, enquanto "Zodiac" ainda está em cartaz. Talvez nunca tenha voltado a "Se7en" por razões que têm menos que ver com o esquema narrativo do filme, suportado pela reviravolta final (depois tornou-se moda), do que com o impacto do tema tratado. Ou da maneira como o tema foi tratado. A verdade é que o filme resistiu ao tempo e à força do argumento. A principal razão é o mérito de Fincher, a qualidade de autor que o define como um dos melhores realizadores americanos da actualidade.
Há um modo fincheriano de fazer as coisas. Não irei falar em obsessão, paranóia ou esquizofrenia, porque o conteúdo não me interessa, sim a forma. Ou, de outra maneira, a forma como expressão de uma visão do mundo. A câmara de Fincher é tensa, passeia-se pelas personagens tentando captar-lhes as fragilidades - como um psicopata. Em "Se7en", uma dança é ensaiada, entre o caos dos quartos onde aparecem as vítimas (as sombras atravessadas pela luz, os objectos fetichistas, a encenação dos corpos e da carne) e a desordem da casa e da esquadra onde os dois agentes trabalham. Repare-se que não há uma verdadeira ordem no mundo em que as personagens existem. Os diálogos reforçam a ideia - a cidade é uma permanente ameaça, Jonathan Doe surge como redentor de todo o sofrimento, anjo purificador da maldade humana. Mas, mais do que os diálogos, o que evidencia esta impossibilidade de fuga é o trabalho de encenação do espaço físico do filme. A casa do detective Mills (Brad Pitt) ainda não existe enquanto lar para a família. Os lençóis cobrem os móveis, a mulher sente-se inadaptada, nenhuma ordem governa a vida da personagem. Já no caso do detective Sommerset (Morgan Freeman), não conhecemos a casa, sentimo-lo como um solitário que é procurado pela mulher de Mills para servir de ombro consolador. Em "Zodiac", existe uma semelhança de processos: Robert Graysmith (Jack Gyllenhaal) é um tipo estranho que, mesmo quando se casa, não deixa de afastar as pessoas que ama. A casa onde ele habita é tão sombria como a caravana onde o possível assassino vive. De igual modo, respira-se na casa do polícia (Mark Rufallo) que investiga as mortes do assassino do Zodiac uma frieza que anuncia uma progressiva distância entre o polícia e a mulher, personagem que praticamente não tem falas no filme. Quase se pode afirmar que é tão elevado o grau de sociopatia nos heróis dos filmes como o é nos vilões. Não há estereótipos, para Fincher. Apenas almas humanas, ou irremediavelmente perdidas ou em busca de um sentido para a perdição, para o caos em que se vêem envolvidas. A todos estes temas serve na perfeição o jogo da crueldade (melancólica) resgatado aos quadros de Francis Bacon. As personagens enclausuradas do pintor, as coreografias grotescas, tanto se repetem nos mortos de "Se7en" como nos vivos que passam pelo filme. As posições em que as vítimas do assassino em série aparecem são óbvia referência a Bacon - um movimento inerte que transcende a morte e se fixa como obra-de-arte. John Doe, em "Se7en", mais do que deixar uma marca ética de posicionamento contra a decadência do mundo, pretende limpá-lo das impurezas que o poluem. A acção do assassino é exclusivamente de ordem estética (já Thomas de Quincey o dizia); a ética é uma desculpa - mais facilmente se perdoa a loucura a um moralista do que a um esteta. Em "Zodiac", Fincher retrocede no caminho - e descobrimos que é difícil encontrar beleza no mundo de um moralista. O assassino revela-se.

[Sérgio Lavos]

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