08/02/07

Lição nº3

Chega de complacência.
Com muita paciência, disseco o cadáver exposto, à minha frente. De bisturi na mão, tique nervoso mais calmo, olho atento. A anatomia não é apenas uma arte plástica; trata da semântica do corpo, a única que pertence ao domínio do sagrado. Mas não se fala nem de carne nem de nervos. Não nos referimos ao sangue e às artérias em que circula.
Há algum asco, claro. A limpeza dos ossos, depois de descarnados, é demasiado clara. Mas quando me deparo com as vísceras e a violência da nudez implícita, sinto uma aversão imparável.
Detecto os defeitos, os erros, os desvios, as diferenças em relação ao atlas que conheço de cor. Não me consigo perdoar a angústia; da influência? Da influenza, sem itálico e com muito espirro à mistura. Nada é igual nunca. Tudo se toca, tudo se cruza em tangentes breves e agudas. Há a revolta do estômago, o órgão que mais sofre - não cedo aos instintos da mundanidade, e por isso não menciono o coração (antes já o fiz de um modo que facilmente se podia qualificar de dissimulado).
Já sem muita paciência, detecto, ligeiro, um sentido na sintaxe da obra; dura pouco, a sensação. Ah, que belos e rápidos segundos. Mas depois a aversão, o asco. Um período de nojo para cada letra, cada palavra, cada frase. Uma página em branco em vez do cadáver à mesa do jantar. Árdua refeição de metáforas e derivações estilísticas. Azia e enjoo.

[Sérgio Lavos]

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