01/01/07

Balanços

Nesta última semana, andei a organizar mentalmente listas, à força de me faltarem os meios de as ordenar por escrito – todos os anos me sirvo de uma agenda que é apenas usada durante dois, três meses; depois, as anotações das minhas actividades caem, de modo irremediável, no buraco-negro da memória, arriscando decisivamente o esquecimento. Contudo, há um método que me serve de desculpa para esta falta de método: sei que aquilo que recordo será apenas o que foi verdadeiramente importante, e isso continua a ser suficiente – ainda não existe o receio da falência da velhice.

Abandonei as listas. Porque não li o suficiente (pelo menos, não me dediquei a novidades editoriais de modo sistemático, ponto de honra meu); porque o ritmo de visita a salas de cinema continua bastante instável; porque não gosto de me atirar com unhas e dentes a toda e qualquer novidade musical – apesar da partilha de ficheiros que se tornou norma no último ano. E por outras razões, de que agora não me quero recordar.

Mas cheguei a uma conclusão, no que diz respeito a filmes. Dois no topo: Caché-Nada a Esconder, de Michael Haneke, e Uma História da Violência, de David Cronenberg. Há outros, mas interessa-me falar apenas destes dois.

Porque este foi o ano que acabou com uma das maiores repugnâncias a que assisti nos últimos tempos: o enforcamento de um ser humano quase em directo nas nossas salas aquecidas pelo espírito natalício. Saúde-se este regresso aos tempos medievais, quando o povo assistia na praça das cidades às execuções públicas de criminosos e bruxas! A televisão é este maravilhoso meio que diariamente desmente a proclamada superioridade moral do Ocidente. A exibição de atrocidades já tinha começado quando Saddam foi capturado – o horror da natureza humana em forma de humilhação televisionada – e culminou de forma espectacular na abertura de telejornais por esse mundo fora, com declarações de felicidade perante a morte de um homem (ou monstro? Não há diferença) à mistura, prime-time televisivo para a miséria humana. E não falo das vítimas do ditador, porque essas têm o direito à vingança (mas não em directo, claro); falo dos espectadores a milhares de quilómetros de distância, inocentemente (ou não) imbuídos no rastilho ateado pelos líderes que os governam. A voz do dono é aquela que se regozija com a pena de morte em directo.

Não será necessário avançar muito na ligação entre os tempos que vivemos e as obras que vão sendo produzidas. O filme de Haneke consegue ser simultaneamente uma reflexão sobre os mecanismos endémicos da violência e uma denúncia inteligente do papel que os media podem ter na propagação dessa violência. A tensão que pulsa ao longo do filme culmina na explosão de sangue que salta do ecrã subitamente e deixa o espectador perdido nos seus próprios preconceitos. O mesmo método da sua obra anterior, Brincadeiras Perigosas, sem a desnecessária carga psicanalítica que está presente, por exemplo, em A Pianista.

Já a obra de Cronenberg passa por ser um jogo - perigoso, porque não? – e uma séria demonstração do potencial de violência que habita em cada um de nós. No momento errado (ou certo) o impulso surge mesmo no mais pacífico dos homens. Não será um lado animal, demasiado simplório; é antes um instinto de sobrevivência que se ancora na eficácia do assassinato, da capacidade inata que cada um tem de matar de modo frio e terrivelmente racional. A inteligência humana permite a dissimulação, a mentira e a agressividade extrema.

Basta olhar para o mundo de hoje para percebermos isso. Ou então, entender as obras que ainda conseguimos produzir de maneira a que a nossa compreensão do mundo não se baseie num pessimismo patológico. Se há quem ainda consiga criar no meio do caos, nem tudo pode estar perdido.

[Sérgio Lavos]

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