24/11/06

IVG (2)

Em dois dias seguidos, uma acusação se repete. Ontem, directamente e feita por um grande amigo; hoje, por mail, o Rui também me acusa do mesmo: de um desvio para a direita. Não sei se deveria sentir-me irritado; aceito qualquer mudança no meu modo de pensar porque sempre fiz questão de achar que a ortodoxia é sempre inimiga da pertinência. A não ser que seja acompanhada de um saudável cinismo ou de uma abominável hipocrisia. A acusação, na boca de um amigo de esquerda, acabou por ser menos surpreendente do que se poderia esperar. Mas, lamento, andamos muito longe da verdade.
Em quase tudo continuo de esquerda. Nos costumes, sou liberal ao extremo: acredito no dever do Estado não se imiscuir na vida privada de cada um. E isso inclui aceitar, por exemplo, todos os modelos de união entre pessoas, do casamento às uniões de facto heteressoxuais, passando pelas uniões homossexuais, o que obriga, claro, a defender uma mudança de legislação que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com todos os direitos que a legalidade permita, incluindo a adopção. E isto não pode ser nunca matéria referendável. Acredito também que a revolução sexual dos anos 60 e a luta pelos direitos das mulheres, em conjunto, contribuiram para a mais significativa mudança ocorrida nos últimos 40 anos no mundo. Acredito ainda na liberalização total da venda de todo o tipo de droga, desde que o comércio das drogas duras seja controlado pelo Estado.
Em termos de Economia, apenas posso aceitar a globalização e o mercado livre; seria pouco sensato não acreditar nesta inevitabilidade. Mas defendo que o poder de intervenção do Estado se deva manter nos domínios económico e produtivo - no fim de contas, se elegemos os nossos políticos para nos governarem, não me parece normal depois pedirmo-lhes para se demitirem das suas responsabilidades. Não acredito, simplesmente, nas virtudes da auto-regulação do mercado. Porque falamos de seres humanos, não de gráficos e tendências baseadas em modelos teóricos que muitas vezes falham estrondosamente. Nenhuma teoria económica explica a vontade de poder humana e a exploração do Homem pelo Homem. No entanto, ela acontece. Além do mais, acho que esta globalização se devia estender verdadeiramente a todos. Não deveria haver restrições à imigração e à livre circulação de pessoas, ao contrário do que muitos dos que se dizem liberais defendem. Contradições.
O ponto da questão: tenho bastantes dúvidas em relação ao sentido do meu voto no referendo à IVG. Não sigo a linha do partido político em que costumo votar, mas muitos no campo da direita também se mobilizaram na luta pelo "sim", o que é apenas normal. Não é um chavão afirmarmos que a causa é transversal; é a verdade, porque quase todos nós, em alguma altura da vida, já testemunhámos a existência de uma realidade incontornável: o aborto clandestino. Adiar mais o confronto seria criminoso. Mas sei que devo isto apenas aos esforços da esquerda progressista. Esta razão bastaria para o que sou. Se não existisse tudo o resto.

[Sérgio Lavos]

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