08/10/06

O jogo

O jogo, disposto sobre o pano verde, era aberto. Cada carta valia por si própria, e a mão que ele mostrava não era menos forte que aquela que ele escondia. As mensagens paralelas seriam assim acessórias, a clareza dos movimentos previa que o desfecho fosse rápido e ele prescindisse, se fosse caso disso, da mão escondida. Tudo factos evidentes, daqueles que vêm escritos em tratados da modalidade. Ele, no entanto, entendia a sua estratégia de modo diverso. Preferia percorrer estranhos trajectos, transgredir e hesitar voluntariamente em vista da solução óbvia. Quando se sentia obrigado a jogar a carta necessária, fazia-o com um esgar amargo e enfadado, os dedos atirando com algum desprezo o pedaço de papel na direcção do adversário. Este, placidamente, respondia à sobranceria e continuava a jogar como se nada fosse.
O jogo, disposto sobre a mesa, avançava. Quando se começou a aproximar do fim, as jogadas ganharam um novo fôlego, e a hesitação artificial transformou-se em pressa nervosa. O outro jogador mantinha a calma. Ninguém poderia adivinhar que a mão escondida resolveria a contenda para um dos lados. Menos ainda se poderia prever o surpreendente final, as nuances de uma vez por todas desvendadas. Quando ele se retirou, braços caídos e preso de uma profunda melancolia, o adversário recostou-se na cadeira. Enquanto reunia o baralho, uma carta saltou da manga. Lesto, pousou o cigarro que acendera na borda do cinzeiro e deu um piparote com a ponta do polegar e do indicador, fazendo voar a carta em direcção a algum lugar incerto. De costas, o outro não via. E ele sorria.

[Sérgio Lavos]

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