28/09/06

Ordem

Nunca ninguém ouviu dizer que Dioniso tenha começado a beber cedo. Antes do meio-dia, dormia. Descansava da noite de excessos, suspendia a frenética alegria que o movia.
(Permitam-me que fale no passado. Os deuses antigos, julgo que me perdoam a tendência para o ultrapassado saudosismo.)
Quando o Sol se aproximava do seu zénite, acordava. A noite de folguedos clamava a uma distância mínima, os preparativos obrigavam-no ao esforço inútil do trabalho.
Quando um homem começa a beber antes do meio-dia, trai a memória de Dioniso. O gosto do vinho não ganhou corpo, tem a mesma densidade que uma névoa fina de verão. Há todavia quem ceda a este destino de tolos, quem nunca verdadeiramente consiga saborear o verdadeiro néctar divino - porque recusa a companhia da noite e dos amigos.
A noite, o caos, a ânsia controlada, palavras tacteando o terreno ao longo do serão, conversas ensaiadas e retomadas e tomadas, bebidas por fim e deglutidas, entornadas e balbuciadas até que reste apenas um conjunto desconexo de sons e sopros, tão próximo do sentido primordial das coisas.
Mas nunca ninguém viu Dioniso beber antes do meio do dia.

[Sérgio Lavos]

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