03/08/06

Duas horas de avião

Estou aqui apenas de passagem
(sem qualquer leitura metafísica)
a caminho de outro lugar, regressando de três dias de descanso no campo e na praia, preparando a viagem com um livro no bolso e um mapa noutro - aquele, de Enrique Vila-Matas, prepara-me para o coração inacessível da cidade (Da Cidade Nervosa, ed. Campo das Letras); este, apesar da boa-vontade, espero que ajude a perder-me de modo mais concreto e absoluto nas ruas e bairros que já conheço.
Prefiro não saber (não comentar) as actualidades, as notícias, complicar o descomplicado novelo dos dias. Não me gritem, não me chamem, tenho coisas mais importantes que fazer e que pensar.
A caminho do Porto, Camilo Castelo Branco, há cento e cinquenta anos atrás, encontrou por acaso o seu velho amigo António Joaquim e agradeceu-lhe o convite para a liteira. Os pecados do reino serviram durante vinte horas de moldura pícara ao ofício de contar histórias pelo prazer de passar o tempo apenas. (Vinte Horas de Liteira, ed. Ulmeiro). Não é possível repetir essa era de horas lentas, uma viagem joga-se num piscar de olhos sonolento; num momento pisamos terra conhecida, no outro descemos em solo a desbravar, ou a reconhecer. Turistas a uma velocidade inútil.
Contar histórias e viajar. Como se o ritmo pausado das antigas viagens rimasse com a melopeia das palavras entretecendo-se em tranças de som e sentido. Se perdermos a possibilidade de viajar, perdemos tudo - passado, memória e futuro. Escrever e ler isto num ecrã de computador é de uma ironia que podia ser insuportável, se não fosse, tal sentimento, leviano.
Uns dias então, até ao regresso.

[SL]

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