16/07/06

Nascido Para Matar

Michael Moore, que inventou um género - o documentário sensacionalista com consciência social - filmou, em Fahrenheit 9/11, os soldados americanos no deserto iraquiano com uma precisão de elefante, a necessária, de resto, de modo a captar o espírito de uma aventura muito bélica e nada gloriosa. A determinada altura, alguns soldados dizem para a câmara que, ao passear-se nos seus confortáveis tanques em missão de ataque, ouvem música agressiva como motivação para a carnificina. A música pode ter também essa tarefa: anestesiar o espírito, aplacar a consciência racional do Homem. Um soldado é uma mistura de duas coisas: a máquina programada para matar e um animal dando escape aos seus intintos primitivos e egoístas (no sentido da sobrevivência dos genes preconizada por Richard Dawkins).
O filme de Kubrick, Nascido para Matar, mostra como o processo se desenrola. Na primeira parte, a recruta, existe um esvaziamento progressivo do pensamento e da individualidade, até que aconteçam duas coisas: a mecanização total da atitude e do corpo, e a selecção natural dos mais aptos para o combate. Os recrutas aprendem a viver em benefício de uma entidade abstracta, os Fuzileiros, que serve outra mais distante mas sempre presente: a Pátria. A segunda, na obra de Kubrick, está apenas subentendida. Durante o tempo de aprendizagem, os homens, que antes da chegarem ao quartel são apenas indivíduos entregues a um desejo difuso e sem objectivos, aprendem dolorosamente a pertencer a um grupo, a uma irmandade em que cada membro tem de se dispôr a sacrificar a sua vontade em prol do seu companheiro, primeiro, e da missão que lhes é imposta, em última medida, pelo Estado, depois. Neste estágio da sua aprendizagem, os recrutas aprendem a esquecer o caos que o desejo individual produz. Deste caos, nasce a ordem, uma perfeita geometria da obediência a um poder que emana de um lugar distante dos soldados. A câmara manobrada por Kubrick, na primeira parte, filma com um rigor maníaco esta regularização do indivíduo. Tudo é limpo, tudo é regulado, tudo se torna mecanizado. A parada, a apresentação das armas, a limpeza das botas, a arrumação das camaratas. O recruta Pyle (excelente Vincent D'Onofrio) é o único que resiste à aprendizagem do colectivismo. Um dos pecados capitais, a gula, é o símbolo desta resistência. Quando finalmente Pyle cede percebemos que é tarde demais. E que a submissão é demasiado verdadeira. Ele entrega-se de alma ao mecanismo repressor, e nesse passo coloca-se além de qualquer razão. É que a entrega não pode ser total. O cínico Joker (Mathew Modine) explica como se faz. Fingindo a obediência, consegue ainda salvar a réstea necessária de sanidade que lhe permite sobreviver à experiência da recruta e depois à guerra.
Este cinismo de Joker é depois transportado para a segunda parte do filme, onde a ordem programada se transforma em caos absoluto. Nada pode preparar os soldados para o que sucede numa situação de guerra, espelho distorcido da simulação recriada em casa. A destreza dos soldados nada significa quando o inimigo joga na imprevisibilidade e na improvisação de situações. Kubrick coloca-se atrás dos soldados em patrulha e consegue filmar a perfeita aleatoriedade de uma situação de combate. As regras a que os soldados se submeteram durante a recruta deixam de fazer sentido e eles têm de se socorrer novamente dos seus instintos primitivos. Depois de programados, esses instintos podem ser redirecionados e usados da maneira correcta, concorrendo para o bem comum: dos companheiros, do oficial superior, em última análise da Pátria.
Haverá diferenças entre o soldado que cumpre ordens e o bombista suicida que se sacrifica?

[SL]

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