04/06/06

Saramago e Pulido Valente

Há uma vertiginosa distância interpondo-se entre as palavras de Vasco Pulido Valente e José Saramago a propósito do Plano Nacional de Leitura. Ambos foram incluídos, sabe-se lá por quem ou como, na Comissão de Honra de mais esta panaceia nacional, coisa que me parece, se nos quisermos colocar no lugar de quem toma estas decisões, escorreita e clara. Um, o prémio Nobel da Literatura a que temos direito, o outro, o terno provedor da alma lusitana, um dos mais habéis produtores do veneno que o país gosta de instilar em si próprio. De resto, o percurso de Saramago levou a que ele próprio cultivasse o bondoso passatempo da auto-indulgência, desde que descobriu haver quem leva tão a sério a militância política como ele levou nos idos de Abril. De Espanha, costuma acenar à pátria de quando em vez na esperança de que alguém ainda o veja. E há quem leve a sério os seus devaneios de escritor em perda. É mais fácil dizer mal que fazer bem, sendo que a primeira nunca poderá ter como ponto de chegada a segunda, sobretudo no que toca ao poder virtual da pena.
Deste modo, Pulido Valente divulgou em público o convite que lhe foi endereçado aproveitando para aplicar o habitual correctivo. Ora, Vasco Pulido Valente tem estilo; e tem, sobretudo, sentido de humor. Se lhe vigiarmos com atenção aquele permanente estado de vigor colérico, notaremos uma certa distância e ironia que lhe permite estar a salvo de qualquer beliscadura. O sacana, porque escreve muitíssimo bem, pode dar-se ao luxo de ignorar olimpicamente as respostas à suas provocações, arrasar figuras públicas, trazer à contenda argumentos falsos ou falaciosos sem correr o risco do contraditório. Há outros que também sofrem dessa qualidade, mas ninguém o faz com tanto estilo como Pulido Valente. Saramago é outra história. O homem, quem o pode negar, tornou-se amargo com a idade. Não que alguma vez tivesse sido a imagem da bonomia; aquele ar austero de agente funerário não engana ninguém, é bom de ver. Mas o passar dos anos azedou o leite onde ainda poderia fermentar alguma esperança de desprendimento. Nada feito, ele é comunista e ninguém o poderá convencer de que este mundo poderá ter alguma espécie de salvação. Caminhamos para o caos da cegueira branca. Poder-se-ia dizer que Pulido Valente se assemelha nos maus fígados, mas se eu ousasse tal coisa lá se ia a argumentação por água abaixo. Para o que der e vier, Pulido Valente não está zangado com o mundo, simplesmente está profundamente amuado com o brinquedo que lhe deram para brincar, este belo país à beira-mar plantado. Onde Saramago é deselegante, ignorante e horrorosamente burro, ao ponto de conseguir que José Manuel Fernandes, esse casto paladino do neo-liberalismo, pudesse ter dito que o escritor é elitista, Pulido Valente é cáustico, verrinoso e profundamente certeiro nas críticas. Ele não disse que a leitura é uma actividade elitista; afirmou que a maior parte da sua geração não lê porque não se dá ao trabalho. Ele não sugeriu que motivar para a leitura é um esforço vão; mas apontou as falhas no Plano, as incongruências, sem precisar de mostar alternativas. O estilo basta-lhe. E isto faz toda a diferença.
Eu sei que será demasiado exigir a um esquerdista que tenha sentido de humor, mas, no mínimo, o que se pede é alguma lucidez. E vergonha. Vergonha de quem cresceu num ambiente rural e apenas conseguiu acabar o antigo liceu, e mesmo assim se veio a tornar um, apesar de tudo, bom escritor. Repito, bom escritor. Nunca de génio, e quem sabe se o seria se por um acaso na meninice um qualquer Plano Nacional de Leitura tivesse sido implementado em seu favor. Mas isto é já sonhar alto.

[SL]

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