30/06/06

O bico ao prego

Vasco Pulido Valente decide escrever sobre futebol. Vou repetir: Vasco Pulido Valente - como muitos dos que estão a ler este texto sabem - decide escrever sobre futebol. E o que ele tem a dizer sobre o assunto? Mal. Ah, admiro a coragem deste homem. Na última página do Público, lá está a palavrinha mágica a saltar aos olhos de um qualquer leitor imprevisto. Futebol. E o que ele diz sobre o assunto? Bem, reparem nas contradições: acha o desporto "muito chato" e não consegue justificar o tempo que perde com ele. Antes que se faça qualquer associação livre ao tema do cinema português, ele prossegue. Diz que lhe é indiferente que Portugal ganhe ou perca. Irrita-se com o estendal montado das bandeiras, com o Marcelo, com o circo mediático. Mas vê. Não perdeu mais de meia dúzia de jogos, o que acaba por ser mais do que aquilo que a maioria dos que se dizem amadores da coisa vêem - falo de mim, claro, o problema dos jogos em canal codificado é inultrapassável; nada de urros em locais públicos, cheiro de courato frito ou sambinha dos brasileiros a cada finta, passe ou traque de Ronaldinho e C.ª. E, imagine-se, Vasco Pulido Valente resigna-se à pressão da "atmosfera" e confessa que não lhe interessa ficar à parte do entusiasmo universal. Esperem! Li bem? O último dos gauleses sai da trincheira e junta-se ao Império? O amargo, pessimista, cínico vedor das causas da decadência dos povos lusos concilia-se com o mundo e abraça calorosamente os milhões que javardamente celebram o vazio do espectáculo futebolístico? É esta a razão? Para cavalgar a onda? Um desporto, repito, "muito chato", que não vale o tempo que se perde com ele? Pacheco Pereira, se estivesse morto, estaria neste momento a dar voltas na tumba. Só nos resta então o historiador ubíquo, pobres de nós, só nos resta ele. Aprisionado na sua implacável farda de intelectual blasé de inspiração saxónica e liberal, vociferando para o resto de nós (Pulido Valente incluído) o quão ignóbeis somos. Baixos. Medíocres. Indignos da cabeça gigantesca que o encima.
O que Vasco Pulido Valente tem a dizer sobre o futebol? Mal, apesar de passar horas em frente ao aparelho a ver os jogos do Mundial. A ver o pré, o durante e o pós desafio, as nauseantes reportagens televisivas, as inacreditáveis entrevistas aos jogadores, técnicos, apanha-bolas, populares de garrafão de vinho tinto às costas, aos empregados de restauração e às camisolas dos jogadores, às mulheres e aos bifes que vão ser consumidos pela comitiva - "então, acha que o jogador que está prestes a ingeri-lo tem hipótese de jogar no Sábado?" "e depois da digestão feita, vai assistir ao jogo?".
Enfim, safam-se as bicadas em Marcelo - como comentador de futebol um cruzamento entre Gabriel Alves e o Horácio Caramelo que nos fala de Ontário, no Canadá - e fica a faltar a referência menos velada ao achado que foi convidar o Dr. Paulo Portas para escrever sobre futebol. Bem, se formos a ver bem as coisas, faz algum sentido o convite do... (nem sei bem em que pasquim Portas escreve). Coerente com a pose postiça de Portas na vida, um pouco como a falsa tartaruga de sopa de Lewis Carrol; falso jornalista de direita, falso liberal, depois falso conservador, falso líder de um partido católico, falso católico, falso político populista, falso ministro de Estado, cabelo falso, bronzeado falso, dentes falsos, falso membro do PP na reserva, falso comentador neutro de televisão. O último degrau na escada deve ser o que acede directamente ao comentário futebolístico, imagino. A um passo do elevador que desce a grande velocidade ao oitavo círculo do inferno, aquele que acolhe com prazer quem já só consegue viver da imagem na televisão ou no espelho, o político feito de vidro baço e vácuo, quase nada.
Ah, Dr. Vasco Pulido Valente, se não fosse o gozo que me dá ler as suas crónicas e os seus livros de História, escreveria um texto a dizer mal de si, juro que o faria. Mas respeito-o. Respeito.

[SL]

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