21/05/06

Pulp Fiction

O que distingue um objecto como "O Código da Vinci" de outro qualquer consumível literário não é a qualidade final do produto; é a sua natureza. Um livro que não passa de um jogo literário, bem pensado e relativamente bem estruturado, um passatempo para duas ou três noites passadas a resolver enigmas de fácil solução. Nem sequer tem o atractivo da escolha múltipla e da ilusão de interactividade, como acontece num jogo de consola ou num daqueles livros da colecção "Aventura Fantástica", em que o leitor avança na história com a ajuda de um lápis e de um par de dados, até morrer ou desvendar o enigma final. Tudo está à vista, no livro de Dan Brown: o esquema narrativo, competentemente planeado, e que se baseia em capítulos curtos que deixam em suspenso a solução de um micro-enigma no capítulo que se segue; a sábia dosagem de ritmos e tempos, intercalando sequências onde domina a narração pura (e a acção propriamente dita) e trechos onde as personagens discutem o que se passou até aí, com algumas analepses que introduzem (sem quebrar o ritmo) os elementos da conspiração que fazem mover a acção (as recordações de infância, as digressões pela História de Robert Langdon, etc.); um interesse romântico que não é plenamente desenvolvido até ao final, à boa e velha maneira dos clássicos de Hollywood; o cliché das personagens, imediatamente reconhecível pela maior parte dos leitores - o académico americano metido em aventuras que o ultrapassam (hello, Indiana Jones), a francesinha mignon e inteligente, o polícia irascível mas com o coração no sítio certo (quantas vezes já vimos Jean Reno neste papel? Casting previsível...), o vilão deformado e fanático religioso (Umberto Eco, knock, knock), a entidade difusa que conspira contra os heróis (Eco parodia o tema no seu romance "O Pêndulo de Foucault"), o brilhante, sardónico e aleijado vilão inglês, seduzido pelo poder até à loucura (desde Shakespeare que os vilões têm de ser ingleses; malvados; e com um defeito físico); finalmente, a facilidade do tema, new age para as massas, interpretações alternativas à história contada na Bíblia num tempo em que Deus está morto há quase cento e cinquenta anos.
A referência a tipos-cinematográficos não é coincidência. A grande influência de Dan Brown é mesmo a sétima arte; o livro respira cinema de acção americano por todos os lados. É precisamente por causa disto que a adaptação era, ao mesmo tempo, inevitável e a tarefa mais fácil do mundo. Mas parece que isso não parou Ron Howard, medíocre tarefeiro que meteu a pata na poça, uma vez mais. Afirmação que carece de confirmação visual, e que irá continuar a carecer enquanto o filme não passar numa matiné televisiva qualquer daqui a um ano ou dois. O lugar onde "O Código da Vinci" pertence: a prateleira da pulp fiction esquecida pela história. Podia ser pior.

(Ler também o blogue Porque, sobre o mesmo tema.)

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