26/04/06

O discurso de Cavaco

A hermenêutica do discurso político – quase sempre dúplice ou múltiplo e todas as vezes furtivo – pode tornar-se um espinho difícil de retirar da pele; e aplico a palavra no seu sentido mais literal: é que dói perceber determinadas coisas. Por exemplo, o discurso do 25 de Abril do nosso excelentíssimo presidente. Atente-se primeiro nas reacções, percorrendo de seguida o caminho contrário até à retórica debitada na Assembleia. Na esquerda, o BE desconfia, o PCP desconfia e recorda algo de que, com toda a certeza, Cavaco Silva não gostaria de lembrar, os Verdes papagueiam a voz do dono, o PS aplaude. Como disse, o PS aplaude?! Claro, "um discurso fundamental, apropriado à data comemorada, o discurso de união que se espera da figura mais importante da nação. Cavaco Silva conseguiu, com este discurso, defraudar completamente as expectativas, tanto da esquerda como da direita. Sócrates gagueja e vacila, afirmando positivamente o pendor social das medidas até agora avançadas pelo governo, desviando a atenção da tendência neo-liberal que até agora tem sido marca da legislatura. Não poderia reagir de outro modo; Cavaco foi eleito com o apoio do pleno da direita e subiu ao poder com responsabilidades acrescidas: contentar quem o elegeu, equilibrando a eventual deriva esquerdista do governo, e ao mesmo tempo concretizar o ambicioso programa intervencionista que muitos apoiantes esperavam dele. Quando ouvimos Marques Mendes concordar com o discurso de Cavaco, quase sentimos a garganta engolir em seco, o sapo atravessado de quem, um dia antes, criticara o governo por estar, de acordo com as últimas notícias da OCDE, a não cumprir o prometido em relação ao esvaziamento do défice e ao crescimento da economia. O que o líder do PSD não pode deixar de fazer é defender o emagrecimento do Estado como forma de combater o défice excessivo, e não porque lhe esteja nos genes, este liberalismo anti-natura; quem pensa a direita quer que assim seja, e julgo não estar errado ao achar que o querem contra o desejo da maior parte dos portugueses, votantes do PSD incluídos. Combater privilégios adquiridos pode ser uma faca de dois gumes; se a promessa se mantiver em abstracto, é positivo, mas quando o português começa a ver o Estado mexer nos direitos adquiridos, aqui d’el rei! Prudência nesta matéria é portanto sempre obrigatória. Marques Mendes, que é esperto, sabe disto.
Voltando atrás, Marques Mendes engole em seco – sem que ninguém repare, note-se -, Sócrates retrocede e mente, afirmando a sua costela esquerdista para além de qualquer dúvida, Manuel Alegre aplaude e engole também um sapo, e Ribeiro e Castro finge que o discurso tem alguma coisa a ver com a democracia-cristã que, supostamente, é a ideologia base do partido que ele julga liderar, e também elogia. Belo. Soares mostra a carranca, e nem os patos do costume conseguem grasnar suficientemente alto para se fazerem ouvir na abertura dos telejornais. E na fonte, o que podemos sentir, o que significam realmente as palavras de Cavaco? Optemos pela hipótese menos plausível: Cavaco é sincero. Cavaco não mente. Cavaco tem mesmo o seu coração à esquerda, e acredita na retórica que lhe escrevem. Contra o seu passado como primeiro-ministro ou provando o seu passado como primeiro-ministro – a adversativa aqui tem razão de ser; os seus apoiantes dizem que Cavaco sempre foi de esquerda. Os detractores discordam. – Cavaco é o travão que pode pôr cobro a qualquer tendência liberal do governo PS. Vicente Jorge Silva, no DN, surpreende-se e afirma mesmo que este é o discurso mais à esquerda, mais certeiro, dos últimos quinze anos. E isso inclui Sampaio e Soares. Cavaco rejubilaria, se acaso lesse jornais.
As outras hipóteses, mais prováveis, são de excluir nesta questão? Cavaco mentiu, não sente aquilo que disse. E por que o faria? Que sentido faria a mentira num presidente que acabou de ser eleito e tem uma ou duas presidências pela frente para provar algum ponto que queira provar? Penso em algo diferente, devaneio um pouco e imagino Aníbal sentado no conforto do seu Palácio de Belém, rodeado de Maria e dos seus adoráveis netos, sorrindo naquele modo muito especial que ele tem de sorrir, provinciano e humilde, de homem que conseguiu subir a pulso na vida. Imagino-o a pensar nos seus pais, lá em Boliqueime, olhando com orgulho para o televisor, ouvindo o filho pródigo discursar, escutando o elogio quase unânime dos seus antigos adversários. Imagino-o a sentir o peito inchar de vaidade ao pensar nos pais achando que, apesar de ter subido alto, não se esqueceu do berço de madeira onde nasceu. Há muito de verdade neste súbito devaneio, mas também há alguma mentira. Mas quem saberá distinguir ao certo qual é qual, na ficção como na política?

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